Tuesday, February 28, 2006

TERÇA-FEIRA, 12 DE MARÇO DE 1974

Ontem, o capitão, chegado da CCS, mandou uma boca que soube bem ouvi-la:
— Quando mudarmos de sítio, fala-se que vamos para Mutarara fazer escolta e protecção à linha férrea.
O lugar, hoje, é bom, mas no futuro não sabemos como as coisas se processarão.
Outra novidade trazida pelo capitão é que, quando se fala da Companhia, nota-se respeito por ela e pela sua intervenção nesta zona.
O furo da água volta, a partir de hoje, a ter um posto de sentinela. Também, diariamente, um pequeno grupo de combate passará a patrulhar os aldeamentos.

SEGUNDA-FEIRA, 11 DE MARÇO DE 1974

Os “amigos turras” não nos largam. Parece que temos mel para os atrair.
Pelas 6H30, da manhã, a coluna do 1º Pelotão, já de regresso ao quartel, foi emboscada, logo a seguir ao Morro da Mosca. O grupo começa a ficar calejado com estas emboscadas.
Aos primeiros tiros, os nossos soldados lançaram-se ao solo e voaram para a orla do capim em busca de abrigo. Outros, viram-se obrigados a rastejar e a rebolar, comendo o pó da picada, para saírem da zona de tiro sob o cantar das balas. Era a luta pela sobrevivência no inferno da guerra.
— Bendita instrução na recruta, quando nos obrigavam a rastejar colados ao chão. — assegurou o soldado Andrade.
Debaixo de fogo, a G-3 do Pereira encravou.
— Furriel, a arma não funciona. — gritou, angustiado, o soldado.
— Toma a minha. E não dispares à toa! — respondeu-lhe o furriel Araújo, começando a desencravar a canhota do subalterno.
Em tempo de guerra, diz o povo, não se limpam armas, mas é verdade que convém mantê-la sempre limpa e pronta a usar. Afinal, ela pode ser a chave da sobrevivência dos homens de um grupo de combate.
No cimo da carroçaria da Berliet, o soldado Manhiça abraçou-se à HK-21 e pô-la a vomitar fitas de munições, metralhando o capim, em fogo cerrado.
Com o intensificar do tiroteio, a situação começou a ficar perigosa, se bem que debaixo de controlo.
— Estes turras suicidas julgam-se vacinados contra as balas dos brancos. E convencem-se que se morrerem aqui, podem nascer acolá. — desabafou o alferes Gonçalves:
Como convém nestas ocasiões, foram chamados os pássaros, baseados na cidade de Tete. Os “aviadores” das FAP, chamados a intervir por duas vezes, ficaram muito chateados por saírem do quentinho das cama e virem ao mato dar uma surra ao IN. Fala-se que eles só querem é boa vida e gajas boas, condimentada com marisco fresco e regada com whisky e cerveja, no bom ambiente do ar condicionado, na cidade. Para a próxima, alisto-me nas FAP.
Na reacção final das NT, foram vistos alguns turras, batendo em retirada com a arma disparando ao acaso para a retaguarda.
À noite, na vila, um bife com ovo a cavalo ajudou a retemperar as forças depois do petisco matinal.


DOMINGO, 10 DE MARÇO DE 1974

Seguiu na coluna, o grupo de 15 militares para Capirizange, sob o comando do furriel Lima.
O pessoal continua agastado com o vague-mestre, porque a alimentação está sendo pouco menos que horrível.
— Este prato está uma merda. Nem para os cachorros que vadiam à volta da cozinha! — desabafou furioso o soldado Patusco.
— Se não queres não comas. Mas lembra-te que não há outra coisa para comer. — ripostou o furriel Guerra.
— Furriel, é melhor ir a uma machamba e comer massarocas assadas. — afirmou o 1º cabo moçambicano Balança.
— E, depois, querem que a gente dê o litro e meio. — acentuou o soldado Fernandes.
— Se não comemos bem, como iremos trabalhar, meu furriel? — perguntou, à laia de desabafo, o soldado Vieira.
— És capaz de ter muita razão. Mas estamos em África, no mato e não na Europa. — respondeu o furriel.
Perante a triste situação da alimentação no quartel, alguns homens já substituem o rancho por sopas de pão no café.
E por que hoje é domingo, com os ouvidos colados ao rádio, soubemos da derrota do Benfica, nas Antas, por 1-2. Nem o Eusébio se salvou.


QUINTA-FEIRA, 7 DE MARÇO DE 1974

Chegou uma ordem para a Companhia enviar um grupo de 15 homens comandados por um furriel para Capirizange. As altas esferas da guerra andam constantemente a alterar os planos. São só ordens e contra ordens. Depois queixam-se que estão a perder a guerra!
A coluna não levou nenhum carro civil, pelo que chegou cedo ao seu destino.
Hoje, em Portugal, teve lugar o Festival da Canção da RTP. A música vencedora foi “E depois do adeus”, cantada pelo Paulo de Carvalho. A emissão do programa radiofónico estava com interferências, pelo que se ouvia mal.


SEGUNDA-FEIRA, 4 DE MARÇO DE 1974

Iniciou-se outra Operação — Loja 2. O alferes Gonçalves à cabeça do seu pelotão, abrindo caminho por entre os milheiros das machambas, mais parece uma mãe galinha, orientando a sua ninhada de pintos. Serpenteando atalhos e desbravando matagal, o grupo tem pela frente quatro dias de suplício, em patrulha entre o Zóbuè e Mussacama.
Choveu a cântaros! E não há esperança que a meteorologia melhore. Os corpos húmidos e as botas carregando lama, tornam o pelotão, subjugado ao perigo iminente, num amontoado de sebo ambulante, autentica carne para canhão.
É preciso ter calma! A guerra não é para ser feita, mas para se ir fazendo! Além disso, há uma distância tão grande entre o que se diz e o que se faz.

DOMINGO, 3 DE MARÇO DE 1974

No Delfim, a coluna do alferes Gomes foi informada que os turras tinham ido buscar uma arma pesada ao Malawi e, para a trazerem, levaram muita população da Viúva Henriques.
Recebemos o pré. A nível dos furriéis, 4.300$00, cá e na Metrópole ficaram 11.700$00. Como tal, o jantar aconteceu na vila e foi melhorado com lulas grelhadas e muita LM fresquinha. . . Quase todos os militares optaram por deixar 2/3 do pré, na Metrópole, à guarda da família.


QUINTA-FEIRA, 28 DE FEVEREIRO DE 1974

Pelas dez horas da manhã, soaram meia dúzia de tiros de Kalash, disparados das machambas do Malawi. Consta que o reforço do furo da água “andava a banhos com as muanas” no ribeiro. O pessoal está de prevenção. Não se pode facilitar a vida! Um abono de morteiro varreu a zona de onde saíram os tiros de Kalash.
— O cabrão do turra deveria estar empoleirado na copa de uma árvore. — murmurou o 1º sargento.
À noitinha, com o cacimbo, o quartel foi invadido por formigas de asa. Enormes, com cerca de uma polegada, perdiam as asas ao primeiro contacto do corpo com o solo. Os negros lutaram entre si para as apanhar. Serviam-lhes de petisco. Como estamos a alimentarmo-nos mal, o furriel vague-mestre que se ponha a pau. O pessoal desconfia que ele está feito com o 1º sargento Mingas. Serão só bocas??? Verdade, verdadinha, o certo é que neste mês de Fevereiro, com 28 dias, gente houve que passou 23 dias fora do quartel, a ração de combate.
Quem não diz mal do rancho é o 1º cabo cozinheiro, Adelino Silva.
— Pudera, passa os dias a mastigar, no meio da graxa da cozinha. — ouve-se dizer na parada.
Cozinheiro na vida civil, num restaurante de Lisboa, o nosso cabo, encarregado da cozedura dos alimentos, justifica-se, quando confrontado com o facto de continuamente ter os maxilares em trabalhos forçados.
— Na cozinha, é assim! O responsável está sempre a provar os alimentos, meu capitão.
— Será? Eu não sou, nem nunca fui cozinheiro. O que eu sei é comer. — comentou o capitão Carvalho, provando o rancho da noite.


TERÇA-FEIRA, 26 DE FEVEREIRO DE 1974

É CARNAVAL! Nesta data, segundo a tradição, os “nossos amigos turras” têm por hábito pregar uma partidinhas de carnaval à tropa portuguesa. Vai daí que a coluna do alferes Gonçalves tenha sido emboscada durante 30 minutos, na zona da Escola, felizmente, para nós, sem consequências. Rapidamente, o IN desapareceu do local, intimidado pela nossa reacção. Parece que os inharros da Frelimo quiseram brincar às cowboiadas. Como é Entrudo, resolveram brincar aos tirinhos. No mato não há mascarados. Só se estiverem emboscados no capim, com a cara pintada.
Um destacamento da CCS foi alvo de morteirada inimiga, sem consequências pessoais.



DOMINGO, 24 DE FEVEREIRO DE 1974

A equipa de tiro, em deslocação até ao Quartel General, seguiu de Moatize para a vila de Caldas Xavier num meio de transporte sui géneris, a zorra, deslizando ligeiro sobre os carris, a 50 Km/hora.
Na apresentação ao Comandante de Batalhão, começaram as reprimendas, por causa do tamanho do cabelo daqueles militares, tapando o rebordo da orelha, das botas empoeiradas e da mistura de fardas.
— Então, meus senhores, vieram fazer turismo? Acham que estão em condições de representar a vossa Companhia nessas condições? — questionou o chefe do Batalhão.
— Procurem já o barbeiro e vão, imediatamente, cortar o cabelo. — ordenou o Tenente Coronel Matias, com cara de poucas amizades
— Yes, sir! — respondeu em silêncio, o madeirense.
— Isto aqui, apesar de não ser uma cidade, traja-se sempre a rigor. Ouviram? Senão mando-vos todos para a casa da rata! — berrou de novo, com a voz de falsete, o maior.
— Claro, meu tenente-coronel. — responderam todos em uníssono e perfilhados em sentido.
Encontrado o barbeiro da Companhia, este prontamente negou-se a executar a ordem.
Ao Domingo, não trabalho! Está fechado para descanso! — justificou.
Para quem luta no mato, nem sempre é possível aguentar as necessidades fisiológicas, exigidas pelo organismo.
Hoje, no regresso ao quartel, alguns militares foram atormentados por cólicas intestinais. Respeitando o pudor, o alferes Vale e o furriel Guerra afastaram-se para o interior do mato para aliviar o organismo. Eis senão quando ambos se encontravam já em posição bastante delicada, ouviram o disparo de uma Kalash, saído do interior do denso arvoredo e puderam observar a bala penetrar no tronco de uma árvore, a pouco menos de um metro.
— Antes a vida. — desabafou o furriel, acabando de atingir a picada e ainda agarrado à cintura das calças.
— Meu alferes, então não sabe que a tropa anda sempre com o coração nas cuecas? Quero dizer, nas mãos? — questionou o alentejano Garrafão.


SÁBADO, 23 DE FEVEREIRO DE 1974

A coluna do alferes Vale transportou uma equipa de tiro, representativa da nossa Companhia. O furriel Araújo, o madeirense, com o cabo Costa e os soldados Afonso e Figueiredo são os nossos dignos representantes, a convite do capitão da Companhia, no campeonato de tiro do Batalhão, em Caldas Xavier.
— Boa sorte, companheiros.
Segundo palavra do maior da Companhia, foram escolhidos por serem bons atiradores e para beneficiarem de uma semana de menor tensão na picada, visto que acumulam dias e dias a fio nas colunas.
A coluna conseguiu rebocar a nossa Berliet minada que ainda se encontrava retida na picada, guardada por um pequeno grupo de combate, há vários dias.


Thursday, February 16, 2006

SEXTA-FEIRA, 22 DE FEVEREIRO DE 1974

Os maus humores fabricados pelo órgão mais volumoso do corpo humano fizeram-se notar pela 2ª vez. O furriel madeirense parece uma chaminé a fumar — dois maços e meio de Commodoro, por dia, — uma torradeira de café — seis a oito bicas diárias, — e afoga as suas mágoas na bebida americana. Já começa a desafinar o organismo.
— Antes de sair para o mato, nada melhor do que a Coca Cola para secar. No regresso, a Fanta faz vazar. — afirma seguro o ilhéu, orgulhoso pelo recorde de 10 dias consecutivos sem defecar, batido há poucos dias.
À noite, ia havendo zaragata da grossa. Os soldados indígenas, do contingente local, pegaram-se, vá-se lá saber porquê. Falou-se de razões de saias com as muanas do bairro do quartel. Encontros fortuitos e ciúmes nas tabancas.
O soldado Castigo e o 1º cabo Salimo, regressados da san-zala do outro lado da estrada, com o andar desengonçado, atravessaram a parada aos tropeções.
— Eh! Pessoal. Onde foi a festa? Isto são horas de chegar ao quartel? — perguntou o furriel Araújo aos seus subordinados do pelotão.
— A gente vem dali, da mulher. — respondeu o Castigo, sorrindo.
— Com que então, dali. E a mulher deixou? — questionou o furriel.
— Deixou, claro. Mulher deixa sempre, meu furriel. — respondeu o soldado, despoletando um sorriso matreiro.
— Meu furriel, não ligue. Estão todos grossos maningue. É só cachaça!— afirmou o 1º cabo Eusébio, com os dentes alvos emergindo do seu sorriso matreiro e também ele com mulher na tabanca.
Alguns tropas brancos entraram na rixa, para pôr cobro ao desacato, porém não foram bem vistos pelos companheiros moçambicanos.
Os ânimos exaltaram-se. O soldado Barbosa acabou partindo a coronha de uma G-3 nas costas de um soldado negro, quando este se aprestava para agredir o alferes Casalta. Podia ter dado para o torto. O soldado Madjé, bêbado que nem um borracho, cambaleava por todo o sítio, cantando e gritando no seu dialecto. De vez em quando puxava a culatra da G-3 e disparava para o ar. Foi necessário o seu furriel, Ventura Rocha, agarrá-lo e ameaçá-lo de prisão, depois de apanhar umas valentes sacudidelas, para que tomasse consciência do perigo da situação. Tudo efeito da maldita da cachaça. Depois de alguns conflitos entre brancos e negros, os graduados conseguiram pôr termo à rebelião.
Mais uma inovação do capitão. Foi proibida a ida do pão fresco para a messe, mais cedo do que o costume. Porquê? Ultimamente, o nosso maior anda com umas ideias estranhas. Estará também ele a ficar apanhado pelo clima?


QUARTA-FEIRA, 20 DE FEVEREIRO DE 1974

O rebenta-minas da coluna do alferes Gomes accionou uma mina anti-carro, em Mussacama, numa cratera coberta de água. Por tal facto, alguns militares cometeram a proeza, involuntária, de aterrarem na picada sem pára-quedas. E lá foi uma Berliet para o estaleiro! A mecânica passa a ter trabalho redobrado. O furriel mecânico Rochinha é que não gosta deste tipo de actividade. Infelizmente, o soldado Uva com alguns ferimentos, só conseguiu ser evacuado para o hospital de Tete, em helicóptero, três horas e meia depois. Melhoras, companheiro e amigo. Mais à frente, outra mina explodiu num camião civil cujo rodado saíra do trilho.
Para atenuar a vibração negativa do dia, disputou-se uma partida de futebol. Agora, 4-1, a favor dos graduados. Aguarda-se a vingança dos praças.


TERÇA-FEIRA, 19 DE FEVEREIRO DE 1974

À noite, após o jantar de confraternização na cantina do Mendes, com a participação de mais de 30 militares, onde foram devorados vários leitões assados, houve serão. Festejou-se o aniversário dos furriéis Fernandes e Canhoto e do alferes Vale. Grande farra! Acompanhados à viola pelo furriel madeirense, aos talheres pelos sargentos Mingas e Elias e aos tachos pelos furriéis Lima e Costa, foram interpretadas algumas canções de intervenção. Mas o auge da pequena festa foi quando o furriel Silva deu à goela e disparou meia dúzia de fados castiços.
— Ah! Fadista! Ah! Tigre! — gritaram os presentes.
À meia luz, imaginámo-nos numa casa de fados, lá para os lados do Bairro Alto. Claro, os “Parabéns a você” foram cantados em desuníssono, com as gargantas ligeiramente enrouquecidas e bem regadas pala LM fresquinha e pelo ardente Chivas militar. Grande piela apanharam os aniversariantes. Mas os sargentos não ficaram muito distantes na classificação.

SEGUNDA-FEIRA, 18 DE FEVEREIRO DE 1974

A partir de hoje, a responsabilidade de reacção na coluna passa a ser da 3ª Companhia que, para o efeito, deslocou um pelotão para o Zóbuè, libertando a nossa Companhia para melhor patrulhar o terreno.
No regresso a casa, por três vezes e em diferentes localidades houve troca de tiros entre os turras e as NT. Os tiros de Kalash foram disparados de pontos distantes em relação à picada.
Poucos minutos tinham passados depois da última flagelação, quando foi interceptado um negro montado numa ginga, em sentido contrário ao da coluna.
Todo o negro é suspeito. Interrogado pelo alferes, o pobre diabo, angustiado, com o medo estampado nos olhos fixos no cano da G-3 apontada à cabeça, deveria imaginar-se a pouquíssimos ins-tantes do juízo final. E implorando pela divindade, negou a sua relação com os guerrilheiros.
— Xi, patã! Mim nã ser frelimo.
— Então o que fazes na picada? A pôr minas para matar a tropa?
— Xi, mim não tem minas. Mim ir no picada trabalhar no machamba
— Pois, pois. Vais trabalhar nas minas!
— Por Deus, jura mesmo. Nã mata eu! — suplicou o homem, banhado em suor e tremendo da cabeça aos pés.
— A tropa não mata preto, mas preto põe minas e mata a tropa. É bom?
— Nã senhô! Nã mata hôme, por favô! Tem pena, senhô!
Que fazer perante estranha situação? Detê-lo? Eliminá-lo? E se fosse verdade que não pertencia à Frelimo? Pesar-lhe-ia para o resto da sua vida um crime que nada justificava?
O desgraçado fedia a catinga. O odor penetrava muito para além dos cílios nasais. Numa fracção de segundos, o alferes recordou-se da sua família. E com os olhos rasos de água, dirigiu-se, de novo ao pobre homem e como o Nazareno, falou.
— Vai, sume-te da minha vista. E nunca mais apareças na picada, diante de uma coluna.



DOMINGO, 17 DE FEVEREIRO DE 1974

De novo, na picada. Sob a responsabilidade do alferes Gonçalves, a coluna pôs-se em marcha, ao romper da aurora.
Na cantina do Delfim, ponto obrigatório de paragem, enquanto o pessoal da coluna se empanturrava com os frangos assados, batata cozida e com arroz, tudo bem regado com cerveja, o informador falou das movimentações do IN nas proximidades:
— Cuidado, há novidades na zona. E não posso adiantar mais nada! — avisou o homem.
A primeira parte do percurso decorreu sem qualquer anormalidade com pernoita em Capirizange.
A pernoita nesta localidade, de simples passagem rodoviária, com apenas um aldeamento, permite consolidar a camaradagem entre as duas Companhias do mesmo Batalhão. E, não raras vezes, a tensão bélica dos militares é disfarçada à custa de estórias tão singelas como os seus principais intervenientes.
Numa das últimas noites, por volta das três horas, estando de sentinela à porta de armas, o 1º cabo Passarinho, da secção da 2ª Companhia, destacada sob o comando do capitão Freitas, cismou ver uma multidão de turras, fumando, em aproximação ao seu posto. O medo apoderou-se de si e, de repente, ei-lo a metralhar o capim, sem dó nem piedade. Sobressaltada, toda a Companhia lançou-se para os abrigos, procurando ripostar ao inimigo silencioso.
— O que é essa merda, aí, ó nosso cabo? — gritou o sargento de dia, furriel Alberto Araújo.
— Os tur ... tur ... ras vêm al ... ali. — respondeu o sentinela, aproveitando o ensejo para despejar outra rajada na direcção do mato.
— Quais turras, qual carapuça? Onde é que estão? Quantos são?
— Mil ... lhares de to ... dos os la ... la ... dos. — retorquiu o 1º cabo, mais trémulo que uma vítima no altar do sacrifício.
— Quais turras, seu ignorante? As luzes que vês são pirilampos! Pi-ri-lam-pos! Ouviste cabeça de matope?
Depois uma valente descompostura na presença do capitão da Companhia, o militar, que jamais vira, em toda a sua curta vida, um único exemplar de insectos coleópteros, jurou nunca mais voltara confundir os simpáticos animais com o IN.


SEXTA-FEIRA, 15 DE FEVEREIRO DE 1974

De anormal, apenas três rajadas saídas do capim verde, na segunda ponte do itinerário, de regresso ao quartel. A nossa pronta reacção motivou a retirada do pistoleiro.
Enquanto, na picada, os militares comem o pão que o diabo amassou, no quartel, apesar das refeições não serem a contento, alguns espertos ainda conseguem confeccionar, à parte, um saboroso bacalhau, chegado directamente da Metrópole, graças à família que teima em enviar lembranças e guloseimas para aguçar o paladar e matar as saudades da terra.
Para contrariar o vague-mestre, o pessoal foi jantar à cantina da vila. Bacalhau cozido com todos. Nem as espinhas sobraram.


QUINTA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO DE 1974

De madrugada, choveu a potes e trovejou. Parecia que o céu se abatia sobre nós.
Outra coluna para digerir. Desta vez, coube à 1ª secção do 1º pelotão, a tarefa de reacção imediata, em caso de contacto com o inimigo.
Algures, no mundo ocidental, festeja-se, hoje, o dia dos namorados. Por aqui, namorar só através do papel, pois todo o dia é dia de trotil.
À noite, no aquartelamento, os soldados mostraram o seu desagrado pela alimentação que lhes está a ser servida. Os ânimos exaltaram-se e, não fora a actuação dos furriéis, tudo seria possível acontecer. Mas ficou a promessa no ar. Ou a alimentação melhora ou há levantamento de rancho com recusa em alinhar nas actividades obrigatórias. Os soldados também exigiram vinho, quando vão para a picada. Ao serem confrontados com o facto de tomarem uma refeição quente quando chegam do exterior, embora abonados com ração de combate, justificaram com a necessidade de alimentarem-se bem para melhor poderem desempenhar as tarefas que lhes são exigidas.


Saturday, February 11, 2006

DOMINGO, 10 DE FEVEREIRO DE 1974

O condutor da SWIFT, um negro forte, já entrado na casa dos cinquenta anos e com o abdómen bastante saliente, refugiou-se debaixo do camião, protegendo a cabeça com os braços e as mãos, e gritava:
— My God, Oh! Shit! I’m gonna die!
— Porra. Tenho medo! — sussurrou o cabo Gomes, das transmissões.
— Deixa-te de merdas e pede auxílio à Companhia. Pede os pássaros a Tete. Rápido. — ordenou o furriel.
Cada vez mais zuniam as balas e os silvos agudos assobia-vam cruzados sobre as NT dispersas ao longo da picada e divididas em dois pequenos grupos separados por uma longa curva.
No quartel, a solidariedade acontecia. Todos queriam partir em socorro dos companheiros de armas. Foi necessário uma enérgica intervenção do capitão Carvalho, para que todos retornassem aos seus postos.
Ao fim de noventa minutos de intensa luta, foi possível ouvir-se o roncar dos motores dos Fiats, sobrevoando a zona de intervenção. Estabelecido o contacto terra-ar, as aves, depois de uma volta de reconhecimento à área, metralharam e napalmizaram a zona de combate, contribuindo para a retirada dos turras.
Feito o reconhecimento posterior à luta, as NT nada sofreram. No mato, algumas poças de sangue encharcavam o solo, polvilhado de algodão e de compressas.
O encontro do pessoal da Companhia foi emocionante, sobretudo depois de sabermos que, salvo três atiradores, o grupo excur-sionista era composto por um grupo de aramistas: corneteiro, rádiotelegrafista, amanuense, escriturário, cozinheiro, furriéis enfermeiro, vague-mestre e mecânico, todos sob a batuta do furriel Guedes. Regressados ao quartel, onde foram recebidos com muito entusiasmo, o furriel madeirense cogitou para com os seus botões:
— Que linda prenda para comemorar os meus 16 meses de tropa: o baptismo de fogo de guerra!


DOMINGO, 10 DE FEVEREIRO DE 1974

De manhã cedo, alguns soldados da secção de segurança ao camião civil, com a permissão do graduado, deslocaram-se ao rio, a pouco mais de 150 metros, para fazer a sua higiene pessoal. Cinco frágeis minutos eram passados, e ei-los, ofegantes, em doida correria, regressando mato acima.
— Furriel, há cascas frescas de ananás. — desabafou o soldado Silva.
— E pegadas descalças junto do rio. — bufou, arfando, o cabo João, o João Sem Medo do pelotão.
— Calma, rapazes. Vamos manter a calma e tomar mais precaução. — afirmou o furriel.
Pelo Racal, o rádio transmissões, o grupo teve conhecimento da partida de uma secção de aramistas, reforçada com elementos mecânicos para ajudar a solucionar a grave avaria. Pelas 10 horas e 40 minutos, soaram os primeiros tiros de G3, a alguma distância. Um sentimento de maior segurança apoderou-se do grupo em prevenção na picada. Instantes depois, soaram tiros secos de Kalash, em aproximação. Tomando lugar nos abrigos naturais existentes na margem do caminho, as NT puseram-se em posição de combate. Cada vez mais perto, os tiros das metralhadoras, soavam em crescendo.
— Atenção! Cuidado! Ninguém dispara. Eduardo, passa a pa-lavra. — ordenou o graduado.
— Madjé e Sebastião, atentos aí à retaguarda.
— Furriel, eu vou-me a eles. — gritou o 1º cabo Álvaro Serenho, manuseando a HK-21 que tinha acabado de alcançá-la no Unimog.
Um saraivada de balas de Kalash sobrevoou a posição da nossa secção. Acto contínuo, fez-se escutar a nossa reacção. Serenho tomou balanço na picada e subiu o barranco. Com o peito descoberto pela camisa desabotoada, penetrou no mato e põs a G-3 a cantar, fazendo chover rajadas de metralhadora na direcção de onde saiam os tiros do IN.
— Cuidado! Temos um homem no mato. Não disparem! — berrou o furriel.
Ao mesmo tempo, pôde observar, no outro lado da picada, o capim remexendo.
— Eusébio, bate o capim, à retaguarda, já. — ordenou o graduado, enquanto preparava um dilagrama que acabou varrendo o local exacto do capim mexido, a não mais de cinco metros do Unimog.


SÁBADO, 9 DE FEVEREIRO DE 1974

No regresso a casa, uma carrinha Volkswagem atascou. E lá foram perdidas mais de duas horas. A persistência da tropa acabou surtindo efeito positivo e, com muito custo, a viatura foi retirada do lamaçal e pôde prosseguir caminho, em grande parte, graças à intervenção do Garrafão.
— Quanto mais mosto, melhor, meu furriel! É só gasosa! — exclamou o condutor.
Na breve paragem na cantina do Delfim, o comandante foi informado da presença de um grupo jovem, iniciado na arte da guerrilha, para actuar na nossa zona. Como “cuidados e caldo de galinha não causam mal a ninguém”, com o corpo retemperado e o espírito em cuidados, a coluna continuou o seu trabalho até que, pelas 18 horas, foi uma vez mais obrigada a parar. Uma arreliadora avaria na transmissão de um camião da CLAN, impediu-o de avançar. Apenas sete quilómetros de distância impediam a tropa de saborear uma refeição quente e repousar o esqueleto no colchão de espuma.
Atendendo à relativa proximidade do quartel e para que o grosso do pessoal não fosse privado de regressar à base, o alferes Gomes ordenou que a secção do cerra-filas, sob o comando do furriel Araújo, permanecesse no terreno, em protecção à viatura acidentada. Que remédio! Para bem de uns, outros são sacrificados.


QUARTA-FEIRA, 6 DE FEVEREIRO DE 1974

A coluna do alferes Casalta regressou depois de ter passado a noite em Capirizange, onde o pessoal militar cumpre à risca os preceitos descritos nos compêndios da camaradagem. Para não variar, o trabalho desenvolvido pelos militares foi desgastante. Picar, centímetro a centímetro, flanquear no mato por entre o capim mais alto do que um homem, do silvado e do matagal, em sobe e desce, debaixo de enorme tensão, prestar atenção a tudo e reagir ao mínimo sinal contrário .... e depois, duas dezenas de viaturas carregadas com mantimentos diversos, atascando no imenso matope, durante cerca de três enervantes horas, com avanços e recuos das máquinas ... Tropa sofre maningue!!!


SEGUNDA-FEIRA, 4 DE FEVEREIRO DE 1974

Após o pequeno almoço, o 1º pelotão saiu em patrulha para os lados do furo da água. Serpenteando as machambas de milho, de mandioca e de feijão, a patrulha aventurou-se por terrenos fronteiriços do Malawi, seguindo, com redobrados cuidados, os trilhos desenhados no terreno, até ao sopé do morro gigante.
A caça aos turras abortou. Afinal, todo o aparato militar ordenado pelo alferes Gomes com o objectivo de apanhar elementos do IN acabou na caça às bruxas. O 4º grupo de combate, em patrulha pelos arredores desta localidade, pernoitava na moagem com alguma comodidade cedida pelo proprietário: uma sala por abrigo, água e sabão para a higiene. À noite, a patrulha era realizada pelo guia que se escapava até à vila, a pedido dos tropas e levava-lhes pregos, cerveja e o correio. Nem tudo é assim tão mal como parece!


DOMINGO, 3 DE FEVEREIRO DE 1974

A última noite foi passada na picada. Montada a segurança necessária para estas ocasiões, os restantes militares puderam encontrar abrigo provisório sob os camiões da SWIFT e da CLAN, cujos “drivers” gostam de conversar com os tropas. E assim, aproveita-se para praticar a língua inglesa.
Na passagem por Mussacama, de regresso ao quartel, a tropa visitou o aldeamento abandonado pela população, anteriormente deslocada para o Zóbuè, com a finalidade de atear fogo às cubatas, evitando, deste modo, qualquer tentativa de abrigo e de aproveitamento por parte dos guerrilheiros.
Passava do meio-dia, quando a coluna transpôs a cancela do portão do quartel. O almoço foi interrompido para receber as saudades vindas de Portugal.
Por ser domingo, à noite, oficiais, sargentos e alguns praças reuniram-se em são convívio, na cantina do Mateus. O propósito foi degustar leitão assado e camarão bem regado com Manica, a cerveja fresquinha. Quem gostou da brincadeira foi o vague-mestre que assim poupou mais matambira na alimentação.


SÁBADO, 2 DE FEVEREIRO DE 1974

O 1º grupo de combate iniciou a coluna sem que as viaturas tivessem repousado. Foi apenas um curto espaço de tempo necessário para aparelhar o rebenta minas, substituir os cunhetes de munições, trocar o saco do correio e reabastecer de combustível as viaturas. A Berliet nem chegou a silenciar os cavalos do motor. Com um parque auto demasiado restrito, desgastado e avariado, — temos de viver com todas as condições postas ao nosso alcance, — só nos resta tentar fazer pelo melhor em cada uma das nossas acções.
Uma enorme carga de água abateu-se sobre a picada, transformando-a num vasto lamaçal. Mas “chuva civil não molha militar”, não é verdade?
A partir de hoje, na nossa coluna, fazemos escolta, força de reacção e cerra-filas.
Em Mussacama, à entrada do antigo quartel, um negro foi apanhado numa das muitas armadilhas deixadas pelos seus ex-inquilinos. A curiosidade nem sempre é boa conselheira. E neste caso, a sorte foi madrasta. E o homem, tropeçando no arame, camuflado com as ervas do terreno, foi vítima de uma granada de mão defensiva. Se conseguiu escapar, não sabemos. A prova é que deixou uma sandália afogada num charco de sangue.