Wednesday, April 26, 2006

QUINTA-FEIRA, 2 DE MAIO DE 1974

Depois do meio dia, um 404, apinhado de civis e com alguns militares a caminho do centro, capotou na curva junto ao hospital. Não houve grandes vítimas a lamentar. Além de várias escoria-ções, há apenas a lamentar um braço do furriel Canhoto, amachucado.
— Podia ter sido mais grave, meu furriel — exclamou o condutor garrafão.
EM Portugal, a Revolução dá os primeiros passos. E o povo saíu à rua para festejar.




QUARTA-FEIRA, 1 DE MAIO DE 1974

Em Portugal, festejou-se, hoje, o 1º Dia do Trabalhador, em liberdade. Foi feriado Nacional. Grandes manifestações tiveram lugar em todo o país, sobretudo na capital, Lisboa. O povo exige “Nem mais um soldado para o Ultramar” e o “Regresso a casa de todos os militares das Colónias, já!”.

Grândola Vila Morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

Zeca Afonso




SÁBADO, 27 DE ABRIL DE 1974

Na Europa, o país vive o seu terceiro dia em liberdade, em democracia. Em África, nas Colónias Ultramarinas, o sonho do fim da guerra e do regresso a casa comanda a vida dos militares portugueses. É urgente pôr fim a esta guerra cruel e fratricida.
Continuamos à caça das notícias da Metrópole, agora difundidas pela Emissora Nacional e pelo Rádio Clube de Lourenço Marques. Já é possível escutar as músicas de intervenção até há dois dias proibidas pela censura.
No regresso da coluna, vieram diversas máquinas pesadas para trabalhos na picada.



SEXTA-FEIRA, 26 DE ABRIL DE 1974

Toda a gente acordou a respirar a liberdade. Os rostos confirmavam a alegria que invadia o coração. Fez-se uma enorme caça às notícias difundidas sobre os acontecimentos que tinham lugar em Lisboa.
Portugal encetou uma nova era, uma nova forma de vida. A democracia nasceu, ontem. É preciso criá-la e fazê-la crescer em segurança para o bem de todos os portugueses.
Quem não deve ter gostado da mudança? O Administrador Civil e o chefe da PIDE-DGS com o seu séquito de bufos, pois amiúde, entrando e saindo no quartel e com reuniões sistemáticas com os oficiais, não estão muito seguros com a situação presente. Será que lhes pesa a consciência pelos crimes praticados sob a capa da ditadura?
Será que os eventos narrados pela população, de homens e mulheres atirados a soco e a pontapé, sem dó nem piedade, para dentro do braseiro das cubatas, não foram, nem são do conhecimento das ditas altas esferas governamentais? Ou nada foi provado? Ou será que ainda se alimenta o conceito que o preto é o pobre diabo por oposição ao mezungo que é suposto saber o que é bom como um deus na terra africana? Pobres deuses com pés de barro!
Para comemorar a queda da ditadura fascista, de manhã, o Capitão ordenou que a bandeira nacional fosse içada no mastro com as devidas honras militares.
Com toda a Companhia em formatura na parada e ao som do toque de corneta, lentamente, a bandeira verde rubra, ostentando as cinco quinas portuguesas, galgou o mastro e, impelida pelo vento, permaneceu todo o dia, desfraldando uma vertiginosa dança sob os raios dourados do sol africano.

Friday, April 21, 2006

QUINTA-FEIRA, 25 DE ABRIL DE 1974

Quarto e último dia da Operação. As notícias das 6 horas da manhã, na rádio de Lourenço Marques, foram suprimidas. Em substituição, escutou-se música clássica. Coisa rara!
— Alto. Ou morreu tubarão, ou houve merda! — exclamou o furriel Araújo para o companheiro de patente, Ventura Rocha.
Os homens do pelotão, um a um, saíram do abrigo nocturno e encetaram a derradeira caminhada pelo mato, silenciosos e cabisbaixos.
A curiosidade motivou nova escuta às 7 horas. E de novo a mesma música clássica substituindo o noticiário habitual.
— Gomes, passa-me o Racal. — pediu o comandante do grupo.
Sintonizado o rádiotransmissor nas ondas hertzianas da África do Sul, da Rodésia e do Malawi, foi com surpresa, mas também com imensa expectativa que o furriel madeirense deu a conhecer a notícia, a todo o pelotão, traduzindo as palavras difundidas para todo o mundo.
— Pessoal, temos uma boa novidade. Houve um golpe de estado em Portugal.
De imediato, impulsionados por estranha força interior, todos — brancos e negros — quiseram obter mais informações.
— Furriel, e a guerra vai acabar? — perguntou o cabo Eusébio, da incorporação local.
— Contacte o quartel, meu furriel. — berrou o Patusco.
— Pode ser que a gente regresse amanhã para a Metrópole. — acrescentou o Viana.
— Calma, calma! Deixem-me ouvir as notícias. Mantenham a segurança. — ordenou o furriel Araújo.
Várias foram as frequências radiofónicas sintonizadas. Todas elas se referiam a mais um feito grandíloquo dos lusitanos. Sem derramamento de sangue.
No quartel, a novidade fora apresentada pelos padres do Seminário, cerca das 7h30.
A confirmação oficial chegou quando foi estabelecido o contacto com a Companhia e do outro lado do fio o 1º cabo Gabriel gritou a plenos pulmões:
— Liberdade, meu furriel. Portugal está livre. O Américo Tomáz e o Caetano foram postos fora do governo. Estamos livres da escumalha.
Obtida a permissão para regressar ao quartel só depois das 15 horas, ao aproximar-se da porta de armas, o pelotão foi recebido em apoteose com vivas à liberdade e a Portugal. A alegria voltou a brilhar na face dos militares portugueses. Digamos que o quartel está em festa. Bebe-se para festejar a implantação da democracia. Bebe-se, sonhando o regresso antecipado ao lar tão distante, na Europa. Bebe-se, aspirando o fim da guerra. O MFA, Movimento das Forças Armadas, tomou conta do governo do país. O povo saiu à rua ao lado das Forças Armadas.
— O Povo está com o MFA.

QUARTA-FEIRA, 24 DE ABRIL DE 1974

Para quê tanto esforço fútil? Porquê tanto sacrifício inútil? Porquê tantos mártires pela pátria que os despreza?
Por unanimidade, foi decidido em conselho de pelotão, abancar nos arredores da vila. De dia, patrulha-se em círculo, zigue-zagueando de modo a regressar ao ponto de partida e pernoitar abrigados. Não cultivamos a audácia de falso heroísmo em benefício de terceiros. Preferimos o desprezível cognome de cobarde vivo, à memória sumptuosa de herói morto.
Para amenizar possíveis consequências futuras, nem a propósito, até o rádio para contacto terra-ar avariou-se, no seguimento de uma queda inadvertida do cabo transmissões Gomes.
Foi, pois, sem espanto que o grupo de combate pode observar, hoje, um par de horas depois do sol acordar, dois aviões Fiat, em voo raso sobre as copas da floresta, rumo ao azimute preestabelecido. Não nos pesa a consciência de não satisfazer, não a ordem do capitão Carvalho, mas a ganância cega dos senhores da guerra.
A tropa sobrevive sempre com o dedo colado ao gatilho, como que acariciando a sua doce namorada, na sucessão dos dias e das noites. Há muita tensão no ar. Parece adivinhar-se alguma surpresa, só não sabemos para quando.


SEGUNTA-FEIRA, 22 DE ABRIL DE 1974

Estranhamos que o IN já não nos chateia há mais de um mês. Há mesmo quem avance que, da próxima vez, será tudo junto. Talvez um bombardeamento. Só bocas!
O 1º pelotão, comandado pelo furriel Araújo, embrenhou-se no mato, a fim de cumprir as ordens emanadas pela Zona Militar de Tete, para a Operação “Loja 4”.
Um dos objectivos desta operação com apoio aéreo é bater a zona entre o Zóbuè e a Viúva Henriques e capturar o armamento do IN, armazenado no antigo destacamento militar, entretanto abando-nado pelas NT, há três meses.
No mato, em especial pela tarde, o calor costuma apertar. Para matar a sede, a tropa em patrulha nas matas, lança mão às dádivas da mãe natureza. E não raras vezes, desenrasca-se, sorvendo o suco de algumas erva, seguindo o exemplo dos companheiros africanos ou bebendo directamente a seiva de uma liana, a planta em forma de corda que apare e nas zonas húmidas.
Apesar das inúmeras dificuldades que se apresentam a estes bravos homens, o facto de conhecerem aquela povoação perdida nas entranhas da floresta pode ser-lhes benéfico. Mas os tempos que correm não estão para grandes façanhas, para além da sobrevivência, quando toda a gente sabe que esta guerra podre só interessa a um restrito grupo de gananciosos que teima em manter os seus privilégios em detrimento do interesse nacional.


DOMINGO, 21 DE ABRIL DE 1974

O pessoal, em formatura geral na parada, tomou conhecimento da ordem emanada pelo comandante da Companhia:
— Os militares podem voltar a andar à civil, aos domingos.
— Grande homem! — ouviu-se desabafar na parada.
O maralhal já vomita o verde e o castanho do camuflado.
O alferes Gomes diverte-se a exibir os seus jornais de estimação. O semanário madeirense, cor de rosa, o CF, Comércio do Funchal, o único jornal que, apesar da sua orientação política reivindicativa, consegue manter-se em contacto livre com os seus milhares de fiéis leitores em todo o mundo português, mau grado os horrores do lápis vermelho da censura e o Avante!, o periódico do Partido Comunista Português.

SÁBADO, 20 DE ABRIL DE 1974

À noite, ouviu-se o Festival da Canção da Eurovisão, se bem que com muitas interferências. A canção Waterloo, do grupo sueco Abba, foi a grande vencedora do certame musical.
— Para quando um Waterloo português? — pergunta-se. Quem souber que responda!


SEGUNDA-FEIRA, 15 DE ABRIL DE 1974

Toda a Companhia foi vacinada contra a cólera. O comandante Carvalho deu o exemplo aos seus subordinados, sendo ele o primeiro a apresentar o braço à agulha, logo seguido pelos outros oficiais.
— Deixa-os pousar! Um dia virão todos à enfermaria. — costumava dizer o furriel Queijo, o enfermeiro principal da Companhia.
Dia negro para o furriel Pinto. Em resultado de uma queda, o braço direito acabou pendurado ao peito após fractura.
Hoje, foi dia do pessoal tomar a sua dose médica individual. Foram dezasseis comprimidos, no total, receitados contra as bactérias que proliferam nas águas, contra o paludismo, contra não sei que mais. Estômago sofre maningue. Não admira que os ex-militares tinham complicações estomacais, uma vez regressados à vida civil.

Thursday, April 13, 2006

DOMINGO, 14 DE ABRIL DE 1974

É Domingo de Páscoa! O sol apareceu. As novidades são quase sempre as mesmas. A coluna da Companhia sofreu uma pequena flagelação, sem consequências. Talvez algum turra irreverente a testar a sua nova Kalash.
— Turra de um cabrão, aparece, dá cara que eu trato da tua saúde. — gritou um soldado, disparando uma rajada de metralhadora para o interior do capim.
— Seu pulha de merda. Seu barrote queimado, vem à picada. — berrou outro soldado, espumando raiva, com a G-3 em punho, metralhando o mato.
À noite, houve batuque. Com a população reunida em círculo, à volta dos tambores, os dançarinos, trajando a rigor nas suas vestes solenes e ostentando pinturas na face e nos membros, de acordo com as tradições ancestrais, executam danças e contorções dignas dos mais maleáveis artistas de circo; ora rastejam na terra seca, ora saltam e desenham no ar artísticas piruetas, armados com arcos, setas e lanças, utensílios etnográficos usados na caça e nas guerras de antanho. Durante todo o festejo, o povo, com predomínio para as mulheres, acompanham o desempenho dos dançarinos e dos tocadores de djumbé, com cânticos a várias vozes e batem palmas numa polirritmia bem acentuada.


SEGUNDA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 1974

Finalmente, a coluna transpôs a cancela da porta de armas. Vencidas tantas contrariedades, os operacionais da picada, encharcados, enlameados, esfomeados e extenuados foram vivamente recebidos como verdadeiros heróis pelos companheiros de armas. Bem o mereceram!
O 4º pelotão está de novo em operação fora dos arames. O alferes Gomes que é adepto de “caçar turras”, muito rondou o capitão na tentativa de se desenfiar. Mas em vão. Os homens do grupo de combate acordaram às 3 horas da matina para os preparativos finais. Mas só às 6 horas é que o oficial se dignou descolar do vale dos lençóis. O calor do Johnny Walker era mais apetecível do que o ar puro da noite africana. O que, afinal, ele conseguiu foi fazer duas participações. Uma contra o 1º cabo que o desafiou, contrariado pelo seu atraso e desrespeito para com os seus subordinados e outra contra o soldado africano que, caindo sob o peso da bebedeira de cachaça, não pôde seguir com o grupo.
Mais outra ideia do capitão:
— A luz apaga-se às 21 horas.
— Qualquer dia, será que chega a acender? — questionamos.


DOMINGO, 7 DE ABRIL DE 1974

São já passados quatro dias na picada e o pessoal está extremamente exausto. Entre picar e flanquear, a contrariedade constantemente actualizada com novas peripécias.
Depois da recusa dos civis em prosseguir viagem, o 2º dia chegou ao fim, em Capirizange, com um cubo da Berliet partido. A informação de movimentos do IN, no Morro da Mosca, motivou uma deslocação ao sítio, dos hélios que tinham transportado o major àquela Companhia.
No 3º dia, remediada a avaria, em consequência do esforço feito pela viatura, devorando dezenas de quilómetros de picada em péssimas condições, o eixo cedeu, no vasto lamaçal de Mussacama. Resta-nos comer massarocas assadas, roubadas ainda verdes em alguma machamba descortinada no meio do mato e fumar barba de milho, por falta de cigarros. Logo, uma noite passada na estalagem estrela, com precipitação anormal para a época.
— Porque será que à tropa macaca calha sempre a missão mais desgastante e mais perigosa? — questiona-se para cá do arame farpado.
Hoje, a coluna progrediu muito lentamente até ao 10%. Se a chuva pode ajudar a enganar a sede, a fome aperta devido à ausência de alimentos, há dois dias. Os mais aventureiros aproveitam um ou outro fruto que resta nos ramos de alguma árvore isolada. Se os pássaros os depenicam, também os humanos devem poder comê-los.
Não se sabe se por compreensão pela situação vivida, se pela presença do número dois da hierarquia do Batalhão, na coluna, o certo é que, pelas 15 horas, os heróis da picada foram reabastecidos por via aérea, com uma unidade de ração de combate a ser repartida por dois homens. A isto chama-se “avareza estatal”. A solidariedade reinou no mato e muitos tropas dividiram o seu quinhão com os civis, inclusive o major Sampaio. Releve-se o gesto. São apenas cinco longos e penosos dias na picada.

QUINTA-FEIRA, 4 DE ABRIL DE 1974

Chove, ininterruptamente, há quatro dias! O estado caótico da picada não oferece segurança para as viaturas. Está pior do que terra lavrada. Simplesmente impraticável!
Na coluna de hoje, comandada pelo irrequieto alferes Casalta, em chegando à moagem, os civis desistiram. E vieram ao quartel queixar-se ao nosso capitão e solicitar os seus préstimos para forçar as autoridades competentes a procederem ao arranjo imediato da estrada. Os militares, quer chova, quer faça sol, com minas, emboscadas ou golpe de mão, nunca desistem. Nem podem!
Composta apenas pelas nossas viaturas, a pista da picada tornou-se mais bélica, na medida em que tudo era militar. Sendo assim, uma falsa sensação de protecção invadiu a tropa. Mas nunca fiando. Nunca se pode facilitar.
A Berliet está a ficar KO. Sem travões e sem tracção dianteira, até ela dá o mau exemplo dos atascanços. Logo à saída do quartel, a Tramagal atolou-se no matope. Foi necessário a ajuda dos tractores civis. Como paga pelo pronto socorro, atropelou uma máquina da Administração Civil local. Justificação: falta de travões. Ou terá sido azelhice do condutor? Não cremos nisso, porque o Pinto é um condutor muito experimentado e exigente consigo próprio. Muito arriscam os nosso condutores.

Tuesday, April 11, 2006

SEGUNDA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 1974

Dia das mentiras. Segundo a tradição popular, muitas e boas mentiras vaguearam neste espaço. As melhores? Que vamos mudar para Moatize. Que o Sporting – Benfica, de domingo, vai ser repetido, porque a equipa de arbitragem estava dopada. Que a guerra está quase a acabar.
A coluna ainda não chegou. Continua atascada no inferno da picada. S. Pedro abriu as torneiras do céu para limpeza e não se sabe quando as vai fechar.
Próximo da hora do rancho, os mainatos aparecem aos bandos, nus, com o umbigo em forma de batata, empurrando-se ou às rixas na fila improvisada junto à cozinha. Com as latas em folha, já deformadas, esforçam-se por conseguirem ser aceites pelos cozinheiros e autorizados a mergulhar no panelão da sopa ou da massa. Ou aguardam impacientemente, a sua vez para raspar o arroz do tacho, ganhando um pouco de comida para si e familiares, das sobras do quartel.
— Mona, vai lavar estas colheres, se quiseres ser o primeiro a comer. — ordenou o cozinheiro Tavira a uma criança com cerca de oito anos.
De imediato, um cacho de mãos, de todos os tamanhos e de todas as idades, elevou-se em direcção do braço do cozinheiro, gritando:
— Eu vô! Eu vô!
A grande maioria dos mainatos é composta por crianças dos cinco aos doze anos, subnutridos, esfarrapados e sem escolaridade que vagueiam pelo quartel, voluntários, sempre prontos a executar qualquer trabalho. Nada mais querem senão comida e protecção.
Uma vez por semana, levam a roupa suja para ser lavada no rio e trazem-na fresca e passada a ferro, quase sempre pelas suas próprias mãos, recebendo em troca 50$00 mensais.
— Esta roupa está mal lavada. Não vou querer-te mais como meu mainato. — afirmou o furriel Costa.
— Xi, meu furriel. Nã faz isso, nâ! Jura mesmo! — solicitou o pequeno Sebastião, com os olhos salientes e vermelhos.
— Eu precisa matambira para mãe. Eu precisa comer também. — acrescentou o pequeno mulatinho, começando a fazer beicinho.
— Iúa, se na próxima semana a roupa não vier branca, vais trabalhar para a machamba. E não tens comer da tropa. Ou vais semear minas na picada? — ripostou o furriel.
— Ih!, meu furriel. Tem noite que mainato deita no esteira sem comer. Depois como que vai trabalhar? Nã pode, nã. Mãe doente no casa.
Filhos de pai incógnito, não raras vezes fruto de aventuras periódicas de alguns tropas europeus, os pequenos mainatos são uma constante, percorrendo o pátio interno do quartel. Querem actividade. Querem ajudar, não importa quem, nem onde, nem quando, mas de preferência na cozinha ou em tarefas de faxina.


DOMINGO, 31 DE MARÇO DE 1974

Manhã de sol. Com a coluna do alferes Gonçalves na picada, teve lugar, no estádio militar, outro desafio de futebol, entre os mesmos adversários de sempre. Com duas baixas de vulto — paludismo, a quanto obrigas! — os graduados entraram em campo des-falcados e foi necessário recorrer ao esforço do alferes Casalta — que grande exibição!!! — e à boa vontade do furriel Almeida, da 3ª Companhia. Com todos estes reforços, os soldados ainda emprestaram o Feijão, que trocou o banco do 411 pela baliza adversária, não sem antes ter sido assediado para facilitar o resultado aos colegas de patente. Perante tanta dificuldade, só espanta que ainda não tenha sido desta vez que a soldadesca provasse o doce sabor da vitória. No final, 1-1, resultado que contentou melhor os graduados.
À tarde, após uma digna refeição para retemperar forças — estilhaços de galinha com arroz empapado — todos os ouvidos colaram-se ao transístor a fim de seguir as peripécias do derby lisboeta. Em Alvalade, as águias voaram mais alto sobre o covil dos leões. Sporting Club de Portugal, 3 - Sport Lisboa e Benfica, 5.
— Lagarto sofre!


SÁBADO, 30 DE MARÇO DE 1974

Após três dias de atascanços na picada, por obra e desgraça das copiosas chuvas, a coluna, desta vez, comandada pelo nosso capitão, conseguiu chegar ao Zóbuè.
Segundo os entendidos nos trabalhos forçados da picada, o desempenho do capitão Carvalho foi muito categórico, esperando sempre que todas as viaturas fossem desatascadas e nunca permitindo que nenhum militar trabalhasse para desenterrar da lama os carros civis, embora controlasse todas as tarefas com uma calma deveras impressionante, como é seu timbre. O estado impraticável da picada é tão horrível que para cumprir os 16 quilómetros que nos separam de Mussacama, a coluna demorou, por incrível que pareça, 10 horas. Assombroso. Só vendo para crer. E nós cremos, porque andamos lá e sabemos quão duro é este trabalho.
Recebemos uma nova Berliet, vinda de Tete, para actuar como rebenta-minas. Até quando aguentará?


QUARTA-FEIRA, 27 DE MARÇO DE 1974

Ainda consternados pela recente perda de um nosso companheiro de armas, disputou-se uma futebolada. Sempre os mesmos adversários. E nova vitória dos furriéis, por 7 a 5.
À noite, na messe, aproveitou-se para celebrar o aniversário dos furriéis Alberto Araújo — Ah! Leão! — Guerra e Lima. A festa durou até às tantas com leitão assado, álcool e música. O animador-mor do grupo foi o sargento Mingas, homem muito calejado nesta coisa da guerra, já com algumas comissões em Angola e Moçambique e que, apesar do seu feitio, mais recto do que severo, acaba contagiando a tropa com as suas anedotas, as suas histórias e com as suas canções, tanto de cariz popular como de intervenção, sem esquecer o Cancioneiro do Niassa.
— Eles comem tudo e não deixam nada!
— Ó senhor de Matosinhos ...
— Já lá vai Pedro, o soldado ...
— Pergunta ao vento que passa ...
— Eles não sabem nem sonham ...
Para encerrar os festejos, houve baptismo de ressaca. A inalação do fumo da seruma ardente ajudou alguns espíritos receptivos a novas experiências. E o pessoal planou nas asas do encanto, divagando solene numa composição psicadélica.
—Make Love Not War!
—Up with the power flower!
—Up with the flower revolution!


SEGUNDA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 1974

A 2ª Companhia continua cultivando o luto. Perdeu outro homem. À tarde. Em Moatize. O 1º cabo Sousa, do 1º pelotão, vítima de acidente de viação perdeu a vida, num encontro imediato, frontal, do jeep, com outra viatura militar. O simpático e sempre alegre piloto do Renault Gordini, vermelho, o Sousa “apagou-se” num estúpido acidente. A propósito, haverá acidentes que não sejam estúpidos? Não! Todos eles são estúpidos! Num ápice, todos os projectos delineados pelo divertido e orgulhoso chefe de família, para depois do seu regresso ao Minho, volatizaram-se no quente e assassino alcatrão de uma recta africana. Espera-o a sua última montada, sem cavalos a roncar, sem estofos de napa, nem cromados reluzentes. Aguarda-o uma fria caixa cinzenta de chumbo.
O Sousa, vencidas as inúmeras corridas nas estradas nacionais, para não se atrasar a chegar ao quartel, “ganhou”, contrariado, a sua derradeira corrida rumo ao Além.
E talvez a sua viúva venha a ser convidada pelo Regime, para receber, no 10 de Junho, dia da raça lusitana, no Terreiro do Paço, uma medalha a título póstumo.
— Que descanse em paz!

DOMINGO, 24 DE MARÇO DE 1974

Um grupo de voluntários embrenhou-se no mato ao encontro do pelotão, em patrulha nos arredores da vila, para lhes entregar um rádio, entretanto, saído da oficina de reparações, e duas grades de cervejas. Foi fácil descobri-lo, porque o paradeiro só poderia ser nas proximidades do Seminário. Enquanto estão no mato, aproveitam para patrulhar os pomares de laranjas e de tangerinas. Assim, o pessoal vacina-se contra a gripe. É só vitamina C.
Depois da ida à igreja, onde assistimos à missa, o campo de futebol foi o ponto de reunião da soldadesca. E quase que acontecia a vingança dos praças. Mas, fazendo jus à sua experiência, os graduados conseguiram a reviravolta no marcador: 3-2. Fica para a próxima?!


SÁBADO, 23 DE MARÇO DE 1974

Chegada de mais uma coluna. Serviço sem problemas de maior. Maquilhados com o pó e a lama, os corpos lassos pela fadiga acumulada durante dois dias na picada, mas na alma a alegria do dever cumprido, os bravos da picada procuram algum reconforto físico no repouso da tenda de lona, aguardando uma refeição quente. Mas são as notícias fresquinhas, acabadas de sair do saco do correio, proveniente da Metrópole, que melhor reconfortam o espírito. São as mensagens dos pais, dos irmãos, dos amigos e da noiva ou namorada, algures na Europa, no distante Portugal, que animam a tropa. E quando o cabo Silva põe a boca na corneta, chamando para o jantar, é ver o pessoal, com a marmita na mão, a correr para a fila do rancho. Mesmo que o prato seja arroz com estilhaços de frango. Fome é mato! E há maningue de fome!
O 4º pelotão está fora do quartel por três dias, em patrulha aos arredores da vila. O grupo está sem ligação via rádio, porque os aparelhos estão avariados.
— Há quantos dias só há um Racal operacional, meu capitão?
— Parece que se anda a brincar à guerra.
— Só falta combinarmos com o IN os dias de guerra. Assim como a guerra do Raúl Solnado. Podíamos atacar às 2ª, 4ª e 6ª feiras e eles às 3ª, 5ª e Sábados. Ao Domingo, descansávamos todos. Podíamos até fazer uns jogos de futebol, uma jantarada na cantina da vila e aproveitávamos para combinar a táctica bélica para a semana seguinte.
— Ó Gomes, se houver azar, você lança uma morteirada ou envia uma secção ao quartel para nos informar do sucedido. — afirmou o capitão, em tom jocoso.
Nesta guerra de interesses, quem tem auto-estradas nos galões é que manda. E quantas mais e mais largas, maior é o poder do mandato. E o capitão, tão miliciano como todos nós, tem de fazer cumprir as ordens recebidas, sob pena de ser considerado arguido em processo disciplinar, segundo as normas do R. D. M.
— Oh! Vã glória de mandar!
O ambiente está cada vez mais tenso. Ontem, ao almoço, não sei porquê, aconteceu um desentendimento entre furriéis e alferes. Estes consideraram grave o sucedido e ameaçaram, de futuro, participar ao capitão.
— Como é, meus alferes? Estamos ou não todos metidos no mesmo buraco?
— Somos ou não todos milicianos?
— Profissionais da guerra, só os dois sargentos, senhores oficiais!
Mais uma viatura ligeira civil, tipo carrinha, aventurou-se pelo mato dentro em direcção à Tanzânia. E os seus cinco ocupantes, duas raparigas e cinco rapazes, de nacionalidade nórdica, também pediram protecção nocturna até transporem o posto fronteiriço. Jantaram na messe e depois fez-se um show com muita música acompanhada com três violas. Claro que o pessoal focou a atenção, de olhos esbugalhados, na carne branca das mulheres loiras. Depois de tantos meses sem poder observar um quadro destes, as glândulas salivares entraram em erupção alimentar pela libido.