Sunday, July 30, 2006

QUINTA-FEIRA, 1 DE AGOSTO DE 1974

Está a tornar-se regra realizar a coluna num só dia. A de hoje, sob o comando do furriel Araújo, do 1º pelotão, no regresso ao quartel, deu boleia a três elementos da Frelimo. Com que então, fomos ameaçados de prisão, pelos coitadinhos dos portugas?!
À chegada ao Zóbuè, foi impressionante a reacção da população, em festa, ao longo da picada, saudando com os tradicionais cânticos, com aplausos e vivas a Moçambique.
Um dos frelimos é filho desta vila e até nosso conhecido. Por diversas vezes esteve na cozinha do quartel, jogou futebol connosco e até é irmão de um dos nossos mainatos.
Bem desconfiávamos que a Frelimo tinha agentes infiltrados na tropa.
Os outros dois frelimos seguiram para Vila Coutinho, onde vão realizar uma banja. Prometeram regressar em breve. Consta que um deles foi furriel na tropa portuguesa.
Ao fim do dia, na vila, foi assaltada uma cantina, queimada uma palhota e um indivíduo foi ferido com um tiro. Isto está a começar a ferver. A tropa portuguesa não se meteu numa alhada destas. Se não foi a Frelimo, quem poderá ter sido? A reacção moçambicana anda à solta!


QUARTA-FEIRA, 31 DE JULHO DE 1974

Os contactos com as chefias da Frelimo sucedem-se em diferentes localidades de Moçambique. O último teve lugar em Vila Coutinho.
Anteontem, foram detectadas 9 minas nas picadas de Caldas Xavier e de Capirizange. Nós continuamos a apostar e a arriscar nas directas. Só de loucos!
O paludismo está a atacar o pessoal. A última vítima foi o furriel Queijo. Logo o chefe dos enfermeiros. A febre alta, a ausência de apetite e a palidez são os sintomas evidentes desta doença contagiosa. Repouso absoluta e medicação apropriada.
_ Deixai-me pousar na cama. _ palavras do enfermeiro portuense.


DOMINGO, 28 DE JULHO DE 1974

Em Tete, tiveram lugar as primeiras banjas com o chefe Rodrigo, da Frelimo. Foi decretado o cessar-fogo na província da Zambézia. E na de Tete, quando será?
Um pequeno grupo dos nossos militares tentou visitar Blantyre, a capital do Malawi, mas com o recente corte de relações entre Portugal e este país, a guarda fiscal não os aconselhou a levar por diante os seus intentos.

Monday, July 24, 2006

SÁBADO, 27 DE JULHO DE 1974

Andamos por aqui ao sabor do vento conforme o quadrante. Se sopra do oeste, a coisa está mais ou menos calma; se bufa do leste e do norte, a história é diferente, por conta do IN. Vivemos, sobretudo, uma guerra de nervos. E é preciso tê-los em aço para aguentar a nossa vivência com todas as constantes surpresas inerentes a esta guerra.
Ontem, a coluna não saiu, porque uma ponte próximo de Moatize foi abatida.
Última hora: A Junta de Salvação Nacional resolveu conceder a independência às colónias ultramarinas.
— Viva o MFA!
— Nem mais um soldado para África!
— Regresso da tropa a Portugal, já!
Toda a gente ficou eufórica por tal motivo. Da contra-informação, soubemos que a Frelimo prepara uma grande ofensiva. Vamos aguardar e aguentar o embate. Temos é de acreditar no nosso governo e continuar com imensa apreensão, pois “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.


TERÇA-FEIRA, 23 DE JULHO DE 1974

A data de hoje, a exemplo de outras, ficará para sempre na história desta Companhia.
A coluna de hoje transportou consigo novidades. Durante a noite, o pessoal resolveu” dar uma oportunidade ao IN. Enormes dísticos brancos com breves mensagens foram apostos nas viaturas militares. “Viva Moçambique”, “Portugal e os Moçambicanos, irmãos”, “Frelimo, luta justa”, “Camaradas, não às armas”, “Estamos com a Frelimo”, “Paz e Independência para Moçambique”, foram alguns dos slogans que fizeram enfurecer os brancos europeus, exploradores dos bens naturais e da vida dos indígenas. Os novos colonizadores ultramarinos tentaram mesmo investir contra a tropa, chamando-nos de traidores à pátria — Qual Pátria? A deles? A que nos escorraçou de nossas casas, do seio da nossa família e que, cultivando a mentira, nos desterrou em pleno mato, lançados à nossa triste sorte, sempre sob a capa hipócrita da religião?
Nem as ameaças de queixinhas aos comandantes militares fizeram surtir qualquer reacção contrária da parte dos nossos militares, muito menos retroceder nos seus propósitos. Com o atraso de quase uma hora, a coluna iniciou a marcha, escoltando apenas as viaturas pesadas, conduzidas por estrangeiros, perante a recusa dos nacionais.
Para os negros desta província ultramarina, a audácia e a coragem da tropa para encetar contacto com o IN, despertou-lhes enorme satisfação. Sabem que os militares portugueses aqui se encontram, contrariados, para protegê-los, mas também sabem que a tropa, tal como eles, está farta, cansada desta guerra que só traz tristeza, dor e morte para ambos os lados.
A coluna fez-se, ainda, sem flanquear, nem picar. No Delfim, foram distribuídos papéis, onde se podia ler a opinião da tropa acerca desta guerra asquerosa. No encontro das colunas, no Cruzamento, verificou-se que as outras duas colunas traziam apenas duas bandeiras brancas, ficando eles muito surpreendidos com o nosso arraial.
Ao chegarmos ao Zóbuè, as viaturas militares fizeram uma passagem pelos aldeamentos, sendo recebidos pela população como se de uma festa se tratasse, com vivas à tropa e a Moçambique. Aguarda-se pela reacção imediata da Frelimo.
Entretanto, Portugal cortou relações com o Malawi, devido ao apoio prestado por este país aos grupos reaccionários do Jorge Jardim. Fala-se que o J.J. tenciona entrar em Moçambique pelo Zóbuè. Pelas bocas que se ouvem e pela vontade dos nossos militares, é melhor que não.


SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JULHO DE 1974

Hoje, houve uma banja — reunião com a população dos aldeamentos. Além do Administrador da vila, também falou um alferes da Companhia que dissertou sobre a guerra, sobre a tropa e sobre os malefícios da ex-PIDE-DGS. As reacções da população foram enormes e esfuziantes, denotando o grande rancor que estas gentes têm a essa cambada de assassinos.
No final, toda a população conviveu no batuque, símbolo da alegria do povo. Pena é que o batuque seja quase sempre prenúncio de perigo iminente, geralmente conotado com emboscadas ou flagelação.

Tuesday, July 18, 2006

SÁBADO, 20 DE JULHO DE 1974

Após a última visita dos VIP, já se fala em mudarmos para Mutarara, local mais calmo e de muito menor intervenção bélica. Até quando?
Em Tete, um camião accionou uma mina anti-carro. A guerrilha já invade a cidade. Ao que isto chegou! Num lugar, pára a guerra. Noutro lugar, inicia-se a guerra. Que grande confusão!


QUARTA-FEIRA, 17 DE JULHO DE 1974

Há muita efervescência por parte dos senhores da guerra, na província de Tete. Depois da visita das chefias, na semana passada, dos maiores, ontem, o comandante da ZOT, acompanhado pelo major do Batalhão 5014, efectuou nova visita ao nosso quartel, para contactar os oficiais. Contudo nada transborda para os sargentos e praças. Top Secret! Sabemos, apenas, que estas visitas também têm tido lugar nas outras Companhias. O vento sopra-nos que só estudam a mudança da Companhia para outra localidade, quando tivermos completado um ano de comissão. Será? Entretanto, anuncia-se para amanhã, nova visita importante: a do tenente-coronel do Sector F.
Temos informações, via rádio, que em Vila Coutinho e em Nampula a guerra acabou, graças a algumas reuniões entre as duas partes bélicas. Agora, a Frelimo e a tropa portuguesa confraternizam e realizam jogos de futebol.
Há já uns bons tempos que andamos a fazer a coluna num só dia, o que, de verdade, é um grande risco para todos. Mas nestas condições, muito fogo é atirado para o mato. Parece uma emboscada ambulante.
Na coluna de hoje, ao sair da zona dos 10%, os militares transportados no cerra-filas estranharam o facto do jipe da PIDE-DGS seguir a coluna mais ou menos a cerca da trezentos metros. Como por segurança e obrigação aquela é a viatura que encerra a coluna, o furriel da secção aguardou a chegada do carro da ex-polícia política para ser incorporado na coluna. Com admiração, os militares puderam observar, à entrada de uma curva, o Land-Rover verde escuro, conduzido pelo chefe daquela força política, penetrar no mato, tendo como passageiro um negro, trajando de branco.
— Talvez vão caçar! — afirmou o furriel.
Mas naquela zona, só galinhas do mato.
Estranho foi o facto de, no regresso da coluna, o mesmo jipe, conduzido pelo mesmo condutor, aproveitar a passagem das viaturas militares para segui-las rumo à vila. Só que do acompanhante negro, nem sombra. Desconfiados com estranho procedimento, os furriéis Lima e Araújo, junto da moagem, abordaram o jipe, tentando saber a que se devia tão desusado comportamento, fora da alçada da segurança prestada pelos militares à coluna.
— Então, problemas com o carro? — interrogou o furriel madeirense.
— Não, não! Tudo bem! — respondeu o homem.
— Mas de onde é que saiu? — insistiu o furriel.
— Fui só despejar lixo ao mato! — exclamou o chefe.
Enquanto durou o breve interrogatório, o furriel Lima, inspeccionando, de soslaio, o interior do carro, pôde observar que no banco da direita jazia um velho cobertor cinzento, em lã, manchado de sangue e sobre o qual dormitava um par de algemas.
— Grande filho da puta! Levou o preto para o mato e despachou-o. — afirmou o Casa Pia.
— E o preto? Onde está o preto que foi para o mato, de manhã? — questionou-o de seguida.
— Qual preto? Não há preto nenhum! — respondeu o condutor.
— Apetece-me descarregar um carregador inteiro nos cornos deste cabrão. — desabafou, bufando de raiva, o furriel alfacinha.
A prova desta suspeita nunca será conhecida. Temos é a certeza de vários indivíduos, acusados de colaborarem com a Frelimo terem sido presos, torturados e desaparecido sem deixar rasto.
Até prova contrária, nesta terra, todo o negro é suspeito de conspirar contra a segurança da nação. Vezes sem conta, os bufos da PIDE invadiram as cubatas das sanzalas, buscando virtuais guerrilheiros disfarçados de agricultores, suspeitos de esconderem armas e minas nas machambas e no colmo da palhota. Vezes sem conta, ho-mens, mulheres e crianças foram violados e abatidos a frio, acusados de falta de colaboração com as autoridades. E quantas orelhas e quantos dedos foram museologicamente guardados em frasquinhos de álcool como trofeus de caça para os amigos contemplarem.
Para a Administração Civil e para a PIDE urge liquidar os resistentes como quem dizima os mosquitos, para exemplo dos de-mais, nem que os inocentes tenham de pagar com a vida pelos verdadeiros culpados.
— Morte à PIDE-GDS!


DOMINGO, 14 DE JULHO DE 1974

Em Tete, no centro da cidade, explodiram algumas minas anti-pessoais, as vulgares caixas de pomada.
Dentro e fora do quartel, o ambiente continua carregado. A confusão é enorme. À informação, sucede-se a contra informação.
Em Portugal, o MFA esforça-se por instalar uma democracia pluralista. Por outro lado, o Partido Comunista e demais partidecos da esquerda tentam desestabilizar a estratégia do Movimento das Forças Armadas. As manifs são constantes. Tudo isto repercute-se na vivência das NT, assiduamente, massacradas em diversos pontos das Colónias.

TERÇA-FEIRA, 9 DE JULHO DE 1974

Hoje, foi dia grande no Zóbuè. Os chicos graúdos vieram visitar a Companhia. O pessoal foi avisado para, sem excesso, se aperaltar e bem receber o comandante da ZOT, o comandante do Sector F e o comandante do Batalhão. Devem ter a consciência a tocar sininhos pelo sacrifício inglório a que tem sido submetido este punhado de homens.

SÁBADO, 6 DE JULHO DE 1974

Os feridos, na emboscada de ontem, foram transferidos para o hospital da cidade de Nampula, devido à gravidade dos seus ferimentos.
Soubemos que os frelimos que emboscaram a coluna de ontem, deixaram na picada um papel com algumas frases, onde destacam que “Somos um grupo especial da Frelimo” e que “Isto é Moçambique e não Portugal”, Esta terra não é vossa. Qualquer dia vocês vão sair daqui!. Na sequência, respondemos à letra, deixando-lhes recado escrito, na picada. “Nós também não queremos esta guerra. Os culpados de tudo isto são os donos do exército português. Também temos família em Portugal, a chorar por nós. Estamos aqui obrigados. Queremos regressar a casa. Portugal está livre da ditadura. Libertem Moçambique, mas deixem-nos em paz”.


SEXTA-FEIRA, 5 DE JULHO DE 1974

À saída do Zóbuè, o pó da picada apresentava pegadas de galinhas do mato, em correria, de um para o outro lado da estrada.
— Furriel, já reparou na grande quantidade de marcas na picada? — alertou o condutor Águia.
— Pessoal, comecem a flanquear e a picar. E tenham muito cuidado. — ordenou o furriel responsável pela coluna com 52 carros, quase todos camiões.
Às oito horas da manhã, a coluna do 1º pelotão, comandada pelo furriel madeirense, foi emboscada logo a seguir aos 10%, quando os flanqueadores penetravam no mato, para além do habitual. Os primeiros tiros do IN lograram atingir um braço do Azevedo e o abdómen, na região lombar, do cabo Costa. Durante duas horas, as NT reagiram ao fogo contínuo do IN.
Enquanto os nossos militares foram valentes debaixo de fogo, no outro lado da guerra, via rádio, o maioral mostrava-se mais preocupado com a perda de uma qualquer viatura em detrimento de um ser humano.
— As viaturas sofreram muito?
O furriel ficou atónito com o que ouviu e pareceu-lhe não entender a pergunta.
— As viaturas estão muito danificadas? — insistiram do comando do Batalhão.
— Temos três foxtrots, dois deles graves. Precisamos, evacuação rápida. Enviem as moscas, urgente. — gritou aflito o furriel madeirense, recém regressado das férias.
— Nosso furriel, homens, há muitos. Manda-se buscar mais, à Metrópole. As viaturas é que são poucas e demasiado dispendiosas. — retorquiu a mesma voz de falsete, ecoando no auscultador do Racal, ao cuidado do cabo Gomes.
— Puta de guerra! Morte à chicalhada! — gritou, enfurecido, o furriel Lima.
— São gajos como este que desgraçam o país. E andou uma mãe a criar um filho para vir aturar esta merda de vida. Não fui feito para isto. — berrou o Casa Pia, deveras exaltado.
Entretanto, o cabo enfermeiro, Fernandes, depois de correr mais de cem metros na picada ao encontro dos feridos, prestou, sob fogo intenso, todos os cuidados médicos possíveis, aos companheiros tombados no solo. Passadas três longas horas, — no mato, debaixo de fogo, uma hora equivale a um século? — as moscas, finalmente, chegaram para recolher os feridos.
O terceiro ferido, o cabo João, apesar do seu ferimento ligeiro, aproveitou a presença dos helicópteros para tratar, no hospital de Tete, dois dedos da mão esquerda, esfacelados ao lançar granadas de morteiros, na carroçaria da Berliet. Felizmente, nada mais grave aconteceu. Mesmo assim, o condutor Águia ganhou uma queimadura ligeira junto da vista esquerda. Suspeita-se de uma tangente efectuada por uma bala que deixou marca na chapa blindada, sobre a qual estava montada a HK-21.
Pelo meio-dia, o caga fumo do Zóbuè, como é conhecida por todos a nossa Berliet devido ao rasto de denso fumo negro deixado na sua passagem, retomou o seu percurso, avançando com lentidão e sempre envolvida numa nuvem de poeira.
A desmoralização pelo sucedido foi rapidamente vencida pela revolta e pela vontade terrível de vingança pelos companheiros em sofrimento.
À noite, soube-se que a Frelimo reunira os seus quatro grupos de combate, actuando nesta zona, comandados pelo chefe Mateus, para fazer a despedida à tropa portuguesa. Afinal, o IN sabe mais sobre a actualidade do futuro de Moçambique do que os milita-res que cumprem obrigatoriamente a sua comissão ultramarina.

SEGUNDA-FEIRA, 1 DE JULHO DE 1974

Chegaram da Metrópole os nossos reforços. Os primeiros sortudos a gozar as férias em Portugal não desertaram e ei-los tonificados pelo repouso físico, reconfortados com o calor humano e fortificados pelo gozo das férias. Estes nossos companheiros, certamente, vêm ajudar a levantar um pouco o moral do pessoal, embora o seu aspecto não mostre o desejo de regressar ao mato. Paciência! É preciso rehabituar-se à triste realidade deste rincão africano.
Como bons companheiros, contaram-nos da evolução da democracia portuguesa e dos horrores desta guerra de guerrilha. E trouxeram alguns exemplares de jornais portugueses, relatando os ataques ao Batalhão 5014.
Espectáculo horripilante foi o que encontraram, de manhã, no hospital de Tete, ao visitarem os feridos do Batalhão. Membros quebrados, entalados em placas de gesso, cabeças partidas atadas com ligaduras, autênticas múmias vivas, sofrendo nos catres de ferro apinhados nas enfermarias. E as macas de lona amontoadas nos corredores, onde a dor é maior, o consolo é palavra vã e a esperança muitas vezes é sepultada antes do corpo. No ar, uma mistura de cheiros a éter, tinturas e pomadas inunda as narinas. A imagem que se retém, parece-se com um quadro dantesco, onde predominam os condenados e os desterrados da vida.
Lá fora, os hélios continuam despejando a carne para canhão como quem atira uma rês para o matadouro.
Na coluna, por fim, veio o morteiro 81 que foi logo experimentado, enviando três granadas para o morro do Malawi.
— Apenas um aviso! — rematou o alferes Gonçalves.