Thursday, March 16, 2006

TERÇA-FEIRA, 19 DE MARÇO DE 1974

O major Sampaio veio visitar-nos. Deslocou-se em helicóptero. Esteve reunido com o capitão. Mais tarde, o 1º sargento Mingas transmitiu-nos a triste notícia da morte do soldado Pina, em Tete. Infelizmente, não recuperou do estado de coma em que caiu, aquando do rebentamento da mina, na viatura, há três dias.
E agora, que resta do jovem militar, trabalhador, humilde e solidário? Não mais do que um corpo hirto, álgido, putrificado e nauseabundo, portador de um pequeno pingente com o número mecanográfico gravado a ser despachado com a carga geral, para a terra que o viu nascer, tão só um número mais no capítulo dos registos dos mortos em combate. Para a família, um telegrama seco, anunciando a chegada, em breve, do esquife com os restos mortais do filho querido, acabado de perder a sua juventude nas longínquas matas africanas, a bem da nação!
— Paz à sua alma!
O pessoal está na fossa, com o sucedido. Sabemos que amanhã, o major quer falar à Companhia sobre a situação actual na zona. Se, aparentemente, estamos mais ou menos seguros no quartel, da porta de armas para fora, é um autêntico inferno. Todos andam com os nervos em franja. Para tentar levantar o moral da tropa, o major ficará connosco alguns dias, observando “in loco” o quotidiano da Companhia, cuja fama, se negativa pela porrada constante a que está sujeita, é positiva pela forma como reage frente ao IN, em situações de contacto iminente, propaga-se para além da Zona de Operações. É como o brande Constantino: “a fama que vem de longe”. E na comunicação, é mais fácil divulgar os aspectos negativos em detrimento dos positivos.
O casal alemão que tem pernoitado no quartel improvisou uma pequena festa com música e dança. E pagaram algumas bebidas aos soldados. Eles podem dar-se ao luxo de fazer umas graças ao pessoal. No fim de contas, também zelamos pela sua segurança.

DOMINGO, 17 DE MARÇO DE 1974

Ontem, em Portugal Continental, um grupo de oficiais revoltou-se, nas Caldas da Rainha. Opunham-se ao regime vigente. Quem não se opõe a tão famigerada ditadura? Os revoltosos acabaram atrás das grades. Mas na panela já começou a fervura. E qualquer dia transborda.
A senda das minas continua. De regresso ao Zóbuè, a pouco menos de 100 metros do local da mina de ontem, foi accionada por um camião da CLAN, uma mina. Vá lá que foi no rodado traseiro e o “animal” vinha bem carregado. Como tinha dois rodados na reta-guarda, foi possível rebocá-lo até à vila. O alferes Gomes, comandante da coluna, em chegando aos 10%, ordenou ao condutor do 411 para acelerar, pirando-se para o quartel, sem dar cavaco aos outros graduados da coluna, os quais ficaram atónitos com tão estranha reacção daquele responsável por tantas vidas e bens.
— Senhor alferes, Avante, camarada! Mas, para um democrata assumido, não lhe ficam nada bem estas atitudes!
Um casal alemão, fazendo-se transportar numa carrinha Volkswagen, após ver e ouvir o detonar da mina, amedrontou-se e receando pela sua segurança, solicitou à tropa protecção e autorização para guardar a sua viatura no interior do quartel.
A malta anda descontente. Há duas semanas que só come arroz empastado com salsichas, para o almoço e salsichas com arroz empastado, ao jantar. Estamos a fazer uma dieta com “massa consistente”, dizem as más bocas.
— Não há outra coisa para comer? — perguntaram os soldados.
— A sorna dos cozinheiros só dá para cozer arroz empastelado. — afirmou um soldado moçambicano.
— Na tua palhota, lá bem no meio do mato, só comias ervas, mandioca, massarocas e béuas. — respondeu-lhe o chefe dos cozinheiros.
— Ao menos cozam lombrigas de esparguete ou estilhaços de frango. — sugeriu o soldado Tomé.
O furriel Fernandes, vague-mestre do pessoal, do alto dos seus 1.80m, justifica-se com a verba a despender por cabeça ... 19$00, por dia. Em consequência, já há quem prometa ir jantar à vila, mesmo que seja obrigado a transportar granadas à cintura.
Neste contexto, quem jura não sair do quartel é o Cara de Bife, o corneteiro, ajudante da cozinha que, de tanto descascar batatas e seguir o exemplo do chefe cozinheiro, vai aumentando de peso e a farda começa a apertar-lhe no corpo.

SÁBADO, 16 DE MARÇO DE 1974

Dia de coluna. O alferes Gomes quase esquecia o inseparável whisky.
— Antes a arma. A garrafa é que não! — afirmou, gracejando, enquanto afiava a ponta do bigode.
Apesar do ligeiro atraso, os picadores e flanqueadores encetaram a sua actividade com enorme empenho. A segurança nunca pode ser descurada.
Pumm!!! O eco soou distante esvoaçando nos braços da brisa suave.
— Grande porra! — gritou o alferes, mais pálido do que uma banana madura.
Uma mina anti-carro fora accionada pelo rodado dianteiro da Berliet. Pior do que a viatura destruída, o soldado condutor, o Pina, ficara gravemente ferido com o impacto do capot, motivado pela deslocação do ar.
O Racal caprichou em não colaborar e emudeceu. Dois pinchas retornaram ao Zóbuè a informar o sucedido, solicitar uma evacuação urgente e substituir o aparelho transmissor.
O Pina, finalmente, foi evacuado para Tete, quatro horas após o acidente. Aguardam-se melhoras.
Com mais esta mina, o furriel Carlos Marques “concluiu com aproveitamento” o 2º grau do curso de páraquedismo sem pára-quedas. O furriel lembra-se de ouvir um grande estrondo, ir ao ar e cair estatelado na terra. Em seguida, olhou à volta e apalpou-se. Todas as partes do seu corpo estavam no sítio da criação. E ainda por esta vez, tudo estava intacto.
Além desta, outras duas minas foram accionadas, felizmente, sem mais consequências a não ser para as viaturas. O furriel Rochinha vai entrar em orbita com o excesso de trabalho.
A coluna continuou com o Unimog 411 na dianteira, fazendo de rebenta-minas. O pessoal desta viatura, como medida de segurança, optou por fazer o percurso fora da picada, não fosse ter algum encontro imediato com as anti-botas.
O dia parece que foi reservado para as nossas amigas minas. À coluna de Caldas Xavier coube-lhe na roleta duas anti-carro, distribuídas pela Berliet e pelo 411. Há acrescentar mais três feridos. A coluna de Moatize coleccionou outras duas anti-carro. E os helicópteros não pararam de zunir no espaço aéreo.


QUARTA-FEIRA, 13 DE MARÇO DE 1974

Manhã passada no aldeamento adjacente à pista do aeródromo, em acção psicológica com contacto directo com a população. O pelotão levou várias caixas de alimentos, com predomínio de ração de combate e montes de latas de sardinha em conserva, que foram distribuídos em diversos pontos da sanzala, apinhados de nativos. Dá para perceber o respeito que os jovens e adultos têm pelos anciãos da aldeia. Estas gentes, secas de carne, com os ossos salientes, labutam nas machambas, próximo da vila, de sol a sol. As pobres mulheres, com os filhos mais pequenos atados às costas, cavam a terra e cuidam dos milheiros e da plantação de mandioca, base da alimentação colectiva. Algumas velhas mulheres, desdentadas, com a face copiando os regos da terra, verdadeiros esqueletos ambulantes, carregam, com o peso do tempo, dois pedaços de pele murcha, pendendo do peito, onde há apenas algumas décadas floriam dois hirtos seios florescentes, cobiçados pelo lado animal do homem. Outras mulheres, mais jovens, amanham a terra com um sacho, enquanto os monas, os filhotes, apoiados à cintura por uma muito florida capulana, chupam os mamilos disformes. Como se alimentam estes tristes!
No aeródromo, a meninada com o ventre inchado, rendida à subnutrição, teve direito a algumas voltas à pista, em Unimog, para gáudio de todos. A alegria das crianças conquistou-lhes, por momentos, a face e os seus dentes alvos sobressaíram no sorriso inocente de criança.
A fome é terrível. Por uma singela lata de conserva, elevavam-se dezenas de mãos abertas, comandadas pela esperança de conseguir apanhar pelo mínimo um único exemplar e poder regressar à palhota com a felicidade gravada no coração.
Durante o jantar, para não variar, na vila, soube-se que os generais António Spínola e Costa Gomes foram demitidos dos cargos que ocupavam. Não é de estranhar, já que o livro Portugal e o futuro tem mexido com o status quo vigente no país e despertado muitas consciências ainda bastante adormecidas.