Wednesday, December 27, 2006

QUINTA-FEIRA, 25 DE DEZEMBRO DE 1974

25 de Dezembro. É Natal! Este é o Natal do regresso. à terra que nos viu nascer, crescer e sermos preparados (?) para matar seres semelhantes a nós, embora com a cor da pele escura, muito escura, não sei se de sofreguidão, se do amor à terra-mãe.
É o natal há muito esperado, que, pelas circunstâncias especiais em que se incere, não deveria nunca ter lugar. É o natal por todos nós sonhado, vivido na paz terrena.
Para os nativos que além ficaram, na terra quente moçambicana, que natal será? Recordamos as pessoas, os lugares, os acontecimentos ... os bons e os maus.
è Natal!
FELIZ NATAL PARA O MUNDO!


Sunday, December 03, 2006

QUARTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO DE 1974 (Continuação)

Meia-noite e trinta minutos. O grande pássaro com a 2ª Companhia do Batalhão Expedicionário 5014 a bordo pousou. Quando o trem do avião beijou, chiando, o alcatrão da pista 03 do aeroporto da capital, estrondosa ovação eclodiu na cabina. Foi o concretizar de um sonho. Voltávamos a pisar o solo pátrio.
E depois ... uma vez recebida a guia de marcha para casa e escutada em sentido a última ordem militar ...
— Companhia, destroçaaar!!!
... os militares encetaram uma doida correria ao encontro dos familiares presentes no outro lado do portão de Figo Maduro, empunhando cartazes e dísticos com frases de apoio aos seus filhos, irmãos, namorado, noivo e amigos, acompanhados por uma fanfarra que debitava cançonetas e modinhas portuguesas — Ó Laurindinha, A Festa do Zé — alternadas com a canção mais escutada em Portugal desde o 25 de Abril e contra-senha para o avançar da Revolução dos Cravos, — Grândola, Vila Morena — a qual é a única responsável pelo nosso regresso antecipado à terra que nos viu nascer e crescer e que um dia, no 25 de Novembro de 1973, nos enviou para bem longe dos nossos ente queridos, para Moçambique.
Consciente do dever cumprido em defesa das populações, este punhado de bravos da picada, imbuído no espírito de solidariedade que reforça a amizade entre os seres humanos, sabe que algures, no meio da multidão, os furriéis ilhéus, Gabriel Medeiros e Lídio Araújo, sem um único parente ou amigo, com quem compartilhar todo o regozijo e prazer que aquele instante presenteava, emocionados, enlearam-se num abraço de companheirismo e mútua amizade, quadro fiel de gente feliz com lágrimas, deixando extravasar a alegria sentida no seu coração insular.
— Que fazemos, aqui, no meio desta gente, ó corisco mal amanhado?
— É verdade. Esta não é a nossa festa, madeirense de uma semilha!

QUARTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO DE 1974

A bordo, não se canta, grita-se. De copo na mão, durante quase toda a santa viagem, muitos militares extravasam a euforia que lhes invade a alma pelo momento presente. Muito tem que suportar a tripulação de cabina deste imenso pássaro metálico. Lugares como o 25D, destinado ao soldado Barbosa, só conseguiram suportar o peso de um corpo durante as operações de descolagem e de aterragem.
Incrível é, pois, descrever a alegria incomensurável destes corações, transbordando a rodes e trabalhando em ritmo acelerado.
Ao longe, já se vislumbram as luzes do solo pátrio. A Ponta de Sagres e o Cabo de S. Vicente desafiando o vasto oceano. Pouco a pouco, o avião, afrouxando os motores, executa a aproximação à capital da nação.
E as casinhas brancas emergindo do vasto solo alentejano já só fazem antever o lar, doce lar, onde poderemos, enfim, abraçar o calor fumado da lareira e respirar o suave aroma da casa portuguesa.
Lá em baixo, o Tejo, brilhando sob o luar argentino, parece correr célere ao nosso encontro, enquanto, de braços abertos, prontos para nos receber, a estátua iluminada do Cristo-Rei, em Almada, dá-nos as boas-vindas à pátria que nos viu nascer.
E de nariz colado ao vidro da janelita do avião, o soldado Sousa Silva, em silêncio, agradece a Deus Pai Todo Poderoso a graça divina de, são e salvo, poder reencontrar a família dentro de breves instantes.


TERÇA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO DE 1974

Ei-lo, ali, diante dos nossos olhos, estacionado na placa quente do aeroporto da Beira, onde há pouco mais de um ano, nos deram as boas vindas com os slogans: “Vai pró mato, malandro!” e “Checas, as minas esperam-te na picada!”
Reluzindo as cores dos Transportes Aéreos Portugueses, o Boeing 707, de nome Pedro Álvares Cabral, aguarda o nosso embarque.


SEXTA-FEIRA, 13 DE DEZEMBRO DE 1974

Sexta-feira, 13, dia de azar! Depois de tanto desejar a chegada deste dia, o que lucramos? A maior das decepções!
Hoje, foi, de facto, o dia mais azarado da comissão.
A Companhia ficou retida no aeroporto da Beira, depois de ter aguardado durante cinco infindáveis horas, pela chegada do avião dos Transportes Aéreos Militares. A justificação apresentada pelo atraso do avião foi que o mesmo sofrera uma avaria técnica num dos motores. Mais tarde, a alegação que correu nos meandros militares foi que o avião tinha sido tomado por uma Companhia de Comandos, em Luanda, a qual obrigou a tripulação a derivar para Lisboa. Ao certo, desconhecemos a justa razão. Ou serão bocas da reacção?
Levado à cena este episódio, a comédia termina com o adiamento e marcação de novo embarque aprazado para terça-feira, dia 16. Até lá ... seja o que Deus quiser!

DOMINGO, 8 DE DEZEMBRO DE 1974

A morte teima em seguir-nos até ao último instante da nossa presença nesta terra mártir. Duvidamos que deve existir uma relação de ódio-amizade com a nossa Companhia. Ou então perseguição pura.
Como se já não bastassem todas as baixas que tivemos, mesmo nas vésperas da nossa partida, a morte reincidiu em marcar a sua presença fúnebre junto de nós.
É incrível como no final de uma comissão, ultrapassadas tantas e tantas ratoeiras do mato, se pode dar de caras com a morte, emboscada junto da porta de armas.
O soldado mecânico Cunha morreu! Atropelado à saída da porta do quartel. É a ingratidão da vida sempre a pregar partidas, quando menos se espera. Razão teria, aquela mulher do mato, exasperada pelas contínuas contrariedades diárias, para maldizer:
— É melhor suportar a vida de puta do que aturar a puta da vida!
Tente-se imaginar a reacção da família, já conhecedora do seu feliz regresso a casa, agora ao ser alertada para a comunicação oficial desta triste notícia, através de um telegrama endereçado pelo Ministério do Exército.

“Sua Excia, o Senhor Ministro, incumbe-me de levar ao conhecimento de Vossa Excia, a morte do vosso querido filho, tombado em operações militares, ao serviço da pátria ...”

— Descansa em paz, companheiro Cunha!

O Batalhão inicia o regresso a Lisboa, no dia 11, com a viagem da CCS. No dia seguinte, será a vez da 1ª Companhia.
— Boa viagem, companheiros!


SÁBADO, 7 DE DEZEMBRO DE 1974

Feita a pernoita em Vila Pery, a Companhia seguiu para a cidade da Beira, aguardando embarque no Quartel General desta cidade. Parece mentira que o mato ficou para trás!

SEXTA-FEIRA, 6 DE DEZEMBRO DE 1974 (Continuação)

Quando as viaturas militares iniciaram a marcha da coluna final, já a população dos aldeamentos apinhava-se na berma da estrada para saudar e agradecer a presença da tropa portuguesa na terra de Moçambique.
— Kanimambo, militares portugueses. Obrigado por tudo o que fizeram por nós. — agradecia um velhote, dirigindo-se ao encon-tro das viaturas, com as mãos elevadas ao céu.
— Adeus! Tá! Tá! — despedia-se, choramingando, uma velhota sumida de carnes, rodeada por uma chusma de crianças em algazarra.
E no ar, misturado com o roncar grave das Berliets, Toyotas, 404 e 411, soava melancólico o eco dos gemidos, choros, risos e sorrisos da multidão que pouco mais tem de seu do que nada.
E o velho cipaio, do interior dos restos da velha farda amarela, com os olhos rasos de água, vendo-nos partir, felizes pelo regresso, acompanhou o seu último aceno com a voz trémula, afogada na emoção e ainda conseguiu murmurar:
— Obrigado, tropa portuguesa. Meu povo vai passar fome maningue, vai sofrer maningue e vai morrer maningue de gente.
De olhos postos no padrão nacional erigido na vila, junto ao posto fronteiriço com o Malawi, questionámo-nos, em silêncio, até quando permanecerá o derradeiro sinal físico, marco secular da presença de Portugal na terra moçambicana.
E já com as viaturas em velocidade de marcha, devorando o asfalto abrasivo da estrada, lançamos um derradeiro olhar para o quartel, onde as tendas, a arrecadação, a messe, os casebres ... brilhando à luz do dourado sol africano perpetuam no mais íntimo de cada um de nós as tristezas e as alegrias nele vividas durante um ano e sete dias. E tem-se a certeza de ali termos deixado grande parte da nossa juventude, devorado pelos fantasmas do gigante de pedra da fronteira com o Malawi.
— Zóbuè, até ... !