Sunday, November 19, 2006

SEXTA-FEIRA, 6 DE DEZEMBRO DE 1974

Hoje, chorei!
Chorei em silêncio, no interior da minha alma, ao recordar o tempo passado nesta terra cálida, emprestada para guerrearmos contra desconhecidos por conta de outrem. Chorei a perda dos companheiros que no desempenho das suas obrigações militares se foram da lei da morte libertando. Chorei pelos companheiros feridos em combate, arriscando a vida pelo bem dos outros. Chorei pelo povo negro desta terra que teme pela sua segurança, na ausência da tropa portuguesa. Chorei pelo pequenino Inácio, o mainato, de 8 anos, apenas um entre milhares, no solo moçambicano, que, com as lágri-mas escorrendo pela face cândida, suplicou-me a sua ida para a Metrópole. Chorei pelo velho régulo, esquelético e esfarrapado, de carnes disformes, tremendo o corpo todo, com o peso da responsabilidade das crianças, mulheres e homens, subnutridos e famintos do seu aldeamento. Chorei, quando, em continência, a bandeira nacional, ao som do toque das cornetas, dirigidas pelo 1º cabo Silva, foi, pela vez derradeira, arriada do mastro, terminando, assim, a presença oficial de Portugal neste rincão de Moçambique. Com a entrega do quartel ao chefe do grupo local da Frelimo, resta afirmar: Ao fim de 500 anos, cumpriu-se Portugal.


SEXTA-FEIRA, 29 DE NOVEMBRO DE 1974

Outra data para ser comemorada no dia de hoje. Um ano de Zóbuè.
Os dias e as noites sucedem-se como que cada vez mais lentos. Os ponteiros do relógio parecem que trabalham num ritmo mais preguiçoso. O desejo de regressar a casa é enorme. Em Portugal, a democracia, com alguma tremedeira, vai tentando consolidar o seu lugar, apesar dos inúmeros perigos que enfrenta. Por cá, nas conver-sas diárias com os camaradas da Frelimo descobrem-se verdades sobre o tempo da guerra, trocam-se impressões sobre as emboscadas, sobre as minas, sobre as flagelações, sobre os golpes de mão, enfim, sobre tudo o que diz respeito à vivência militar nesta zona. Conhe-cemos a cara daqueles que no dia tal estiveram emboscados ou que colocaram as minas accionadas ou que não rebentaram.
Ficamos a saber que o quartel esteve cercado, durante a realização de um desafio de futebol, em dia de Natal, e que só não executaram o golpe de mão porque dois militares, em rendição no posto do furo da água resolveram disparar à toa. Tomámos conhecimento que a Companhia só não foi atacada com morteiros, como previsto, graças à insistente solicitação dos indígenas residentes nos diversos aldeamentos da vila, alegando terem sido sempre muito bem tratados por esta Companhia, cujos militares, além de simpáticos e amigos, respeitavam a população.
Hoje, come-se e bebe-se e vive-se, lado a lado. Os inimigos de ontem irmanados pelo mesmo objectivo: libertar Moçambique do domínio colonial e libertar Portugal do jugo da ditadura salazarista.


TERÇA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 1974

Faz um ano que pisámos o solo de Moçambique! Um ano africano — da guerra à paz! Muito passámos nós. Maus momentos, muitos. Em contrapartida, os bons momentos foram imensos. Todos nós, muito aprendemos nestes 365 dias, longe da família e dos ami-gos. Sairemos de cá mais ricos em cultura e em experiência vivida. Não foi com a preparação militar da recruta e da especialidade que conseguimos sobreviver às inúmeras situações de perigo que se nos depararam. Foi, isso sim, fazendo e errando, refazendo e corrigindo, aprendendo com as dificuldades do dia a dia, numa entreajuda incomensurável.
Para comemorar este 1º aniversário — e tudo leva a crer que único — o comando do Batalhão veio visitar-nos. E nada melhor do que a prenda que nos fez. A revelação da data do embarque para Portugal: dia 13 de Dezembro, próximo.


SEGUNDA-FEIRA, 18 de NOVEMBRO DE 1974

No regresso ao quartel, violenta tempestade abateu-se sobre a picada. Os relâmpagos caíam do céu, cada vez mais intensos e os trovões faziam tremer o céu e a terra na noite de breu.


DOMINGO, 17 DE NOVEMBRO DE 1974

Hoje, foi o adeus às armas. A Berliet e o 404, ao despontar do dia, rumaram à Beira, a cerca de 700 Km, sob o comando dos furriéis Carlos Marques e Araújo, o madeirense, onde terá lugar a entrega das armas postas ao serviço da nossa Companhia. Sentimo-nos, assim, usurpados das nossas inseparáveis companheiras de aventuras e de desventuras.
Um pelotão de camaradas da Frelimo foi destacado pelos seus chefes para ficar sediado no quartel do Zóbuè. A partir de agora, os camaradas vão conviver com a tropa portuguesa no mesmo tecto, espera-se que em santa aliança.
— Quem diria que acabaríamos cohabitando o mesmo espaço físico!!!