Wednesday, August 16, 2006

SEGUNDA-FEIRA, 23 DE SETEMBRO DE 1974

Uma equipa representativa da Companhia deslocou-se a Caldas Xavier para disputar uma partida de futebol. Num encontro amigável, onde sobressaiu o espírito de camaradagem, o resultado foi de muito menor importância. Mesmo assim, 2-2, no placard e um convívio deveras agradável.
Soube-se, entretanto, que numa caçada, o capitão Caldas, da Companhia de Moatize, perdeu-se do grupo, não dando quaisquer sinais da sua presença. Inúmeros militares patrulham a zona, ao seu encalço. Já foi solicitado ajuda à 3ª Companhia do 5014 e a nossa está de prevenção para partir em apoio dos batedores no terreno.
No regresso ao quartel, com grande surpresa, os militares depararam-se com um enorme rinoceronte vagueando na picada. Depois de correr espavorido umas centenas de metros à frente da Berliet, sob o soar dos tiros de G-3, o pesado quadrúpede infiltrou-se ágil, no mato, sem deixar rasto.
Como se não bastasse o encontro com o unicórnio, a uma dezena de quilómetros antes de Capirizange, um grupo de várias dezenas de macacos povoava a picada. Com o aproximar da viatura militar, embrenharam-se no mato, trepando as árvores, de onde retornaram após a passagem da Tramagal, saltitando, coçando-se e emitindo guinchos em altos decibeis.

SEGUNDA-FEIRA, 16 DE SETEMBRO DE 1974

Hoje é um dia lindo! Uma coluna militar deslocou-se a Tete sem qualquer tipo de problemas. Mas a melhor notícia do dia foi-nos transmitida à noite, após o regresso da coluna. O comandante da unidade, perante a Companhia, em formatura, informou:
— Militares, tenho uma boa nova para todos nós. Até ao final do presente ano civil, regressaremos a Portugal, às nossas casas, ao seio da nossa família.
O contentamento dos militares explodiu. Indescritíveis foram os momentos que se seguiram a esta notícia.
Mesmo à luz de um pequeno coto de vela de estearina, alumiando as tendas de lona, os soldados, com o coração aos saltos, sonhando o próximo encontro com a esposa, os filhos, a namorada ou os pais, rabiscaram singelas mensagens, nas quais extravasaram toda a verdadeira alegria que lhes inundava a alma. E há quem já tenha ultrapassado o número cem nas cartas enviadas para casa.
O Cara de Bife, exprimindo a sua alegria pela novidade da certeza do regresso à Metrópole, resolveu colar os lábios no bocal da corneta e vaguear pelo quartel, retinindo improvisadas cançonetas.
— Porra, pá! Vai tocar essa merda para outro lado. — gritou o alferes Vale, correndo esbaforido para a messe.
— Meu alferes, a gente volta para casa. — retorquiu o soldado, sorrindo.
— E tu vais é apanhar gambozinos para o mato, não demora muito! — exclamou o sargento Elias, degustando uma Laurentina.


TERÇA-FEIRA, 10 DE SETEMBRO DE 1974

Terminou a invasão e ocupação do Rádio Clube da capital moçambicana. Foi declarada a independência da GUINÉ. O processo de descolonização não pode regredir. Doa a quem doer. Entre mortos e feridos, alguém salvar-se-á!

SÁBADO, 7 DE SETEMBRO DE 1974

Consequência directa da Revolução dos Cravos, iniciaram-se, dia 5, em Lusaka, as conversações para tratar da independência das Colónias Portuguesas do Ultramar.
Foi declarado o cessar fogo oficial em Moçambique.
Descontentes com a decisão governamental portuguesa, grupos de colonialistas reaccionários, cuja ideologia é contrária ao espírito do MFA, invadiram a sede do Rádio Clube de Lourenço Marques. A revolução chegou a Lourenço Marques!
E o povo saiu à rua. São os brancos que querer manter o seu domínio e exploração sobre os negros, pobres e indefesos. São estes a reagir e a fazer valer os seus direitos.
Se o Gungunhana adivinhasse ...


TERÇA-FEIRA, 3 DE SETEMBRO DE 1974

Ontem, regressaram os restantes militares, aprisionados pela Frelimo.
Mais felizes estão os furriéis Carlos Marques, Guedes e Fernandes e o alferes Vale que seguiram na avioneta para gozo de férias, em Portugal.


DOMINGO, 1 DE SETEMBRO DE 1974

A tropa vive como o moral bastante abalado!
Quando o almoço estava a ser servido, uma ordem de patrulha à pista do aeródromo, activou a curiosidade de todos. A emoção foi enorme para cada um de nós, quando, abertas as portas do Puma, começaram a descer os soldados que ontem foram desarmados. O contentamento no quartel foi geral. Os nossos companheiros foram recebidos com abraços e vivas. Aguarda-se, para amanhã, o resto do grupo da escolta à coluna.


SÁBADO, 31 DE AGOSTO DE 1974

Outro dia triste, para a história da nossa Companhia.
A coluna do alferes Gomes sofreu uma espécie de golpe de mão, à saída da Cantina do Delfim. O proprietário do estabelecimento, onde as perdizes e os frangos assados ajudam a matar a fome aos brancos da coluna, apenas alertou para o máximo cuidado a ter, na continuação da coluna.
— Não desejava estar no vosso lugar! — afirmou ao alferes.
Reiniciada a marcha, alguns frelimos, dispersos ao longo da berma da picada aproximaram-se da cabeça da coluna. Como as nossas relações com os camaradas estão, ultimamente, razoáveis, o alferes Gomes, ordenou a paragem das viaturas e, apeando-se, dirigiu-se ao chefe do grupo a inteirar-se da situação.
Qual não foi o seu espanto, quando, num ápice, viu a coluna cercada pelos guerrilheiros e ouviu a ordem do chefe do grupo para que a tropa abandonasse as viaturas e se sentasse na berma da picada.
Cercados, os militares portugueses tiveram de render-se e abandonar o seu armamento que acabou sendo surripilhado: 27 G-3, 1 HK, 2 morteiros 60mm, os cunhetes de balas e de morteiro e as granadas. Ainda os rádios, o equipamento de enfermagem e todo o equipamento individual dos militares. Felizmente, não houve vítimas a lamentar.
Perante este cobarde evento, depois de prosseguir viagem, a coluna, por ordens superiores, ficou retida em Capirizange.
Os condutores dos carros civis com destino ao Zóbuè, não querendo pernoitar na picada, resolveram aventurar-se sem escolta militar. Azar o deles. Duas minas anti-carro foram accionadas sem prejuízo pessoal e um carro teve de ficar na picada.
— Estes barrotes queimados estavam a preparar-nos um rico regresso à Companhia! — opinou o furriel Marques, encarregado do cerra-filas.
— Grandíssimos cobardes!
Com carácter de urgência, está marcada uma reunião, para amanhã, na Cantina do Delfim, com maiores da Frelimo nesta zona.
No quartel, todos os militares estão revoltados com a cobardia da Frelimo e o alerta é máximo. Bem nos parecia que os turras não eram de confiança. E tudo isto acontece quatro meses depois do 25 de Abril em Portugal.


QUARTA-FEIRA, 28 DE AGOSTO DE 1974

O ambiente, na Companhia, está a ficar pesado, por causa do 1º sargento. Desde que o homem chegou de férias, parece querer mandar em tudo e em todos. Agora, ameaçou o pessoal. Se lhe apetecer passar ronda aos postos de segurança, a qualquer instante, e não encontrar a sentinela no seu lugar, em posição de alerta, avança com uma participação.
— Logo agora que não há guerra! Só podem ser paranóias dos chicos. — exclamam muitas vozes discordantes.
Desde sempre os furriéis quiseram proceder do mesmo modo, por questões de segurança, mas sempre foram desaconselhados pelos comandantes da Companhia.
O dia esteve bastante quente e o pessoal, de tronco nu, vingou-se ingerindo líquidos bem frescos, sobretudo, cerveja Manica e LM.
— Ó 4L, avia mais umas bazucas. O pessoal se não morre na picada, morre de sede! — exclamou o furriel Guedes.
E o Cabo Sousa, qual bichinho carpinteiro, lá vai destapando as caricas das garrafas e colaborando, indirectamente, no avolumar do abdómen de alguns militares.



QUINTA-FEIRA, 22 DE AGOSTO DE 1974

Pela primeira vez, desde que cá chegámos, um grupo de voluntários arriscou embrenhar-se no mato, em busca de caça. Os tempos estão difíceis e agora que a guerra está fria, vamos tentar melhorar o rancho. O pessoal há muito que reclama pela confecção de novos pratos. E o mal-estar relativo à alimentação aumenta de dia para dia, a cada refeição que passa. Os soldados queixam-se que não se alimentam o suficiente em função dos trabalhos que executam e prometem para dentro de pouco tempo um levantamento de rancho. Há quem avance que o vague-mestre está feito com o 1º Sargento. O furriel Fernandes, por sua vez, continua sempre a desculpar-se com os 19$00 por dia, por cada homem da Companhia.
_ Não posso dar bacalhau a 3000$00 ao quilo. — defende-se o furriel, perante o descontentamento dos militares.
Comandados pelo alferes Vale, os “caçadores” lograram conquistar oito gazelas e dois coelhos. Se as contingências da guerra persistirem, não há bacalhau, mas haverá carne fresca. Que o diga o 1º cabo João, da arrecadação.


QUINTA-FEIRA, 15 DE AGOSTO DE 1974

Feriado Nacional! Há seiscentos anos andavam os portugueses malhando nos espanhóis, em Aljubarrota.
O alferes Gonçalves, como comandante interino da Companhia, comunicou aos seus graduados que há um diferendo interno nas hostes da Frelimo, sediada nesta zona. O comissário político não se entende com o chefe dos guerrilheiros e este, por sua vez, enviou uma carta ao quartel, avisando que a tropa não deve reunir com aquele, porque os militares entendem-se só com militares. É um assunto delicado.
— Despachem-se! Estamos fartos disto! Queremos voltar para Portugal. Lá, está-se bem! — afirmam os nossos militares.


TERÇA-FEIRA, 13 DE AGOSTO DE 1974

Ontem, houve uma banja dada pela Frelimo, no campo de futebol do Seminário. De acordo com o furriel Carlos Marques, assistente ao acontecimento, a população presente seria em número próximo ao milhar, para mais. Falou o comissário político da Frelimo, no Malawi, indivíduo possuidor de grandes dotes na oratória e no trato com as pessoas. Dissertou, durante quatro horas, sobre a Frelimo, os seus objectivos, a paz que se deseja e o futuro de Moçambique. Aqui e ali, a oratória do comissário era interrompida, sendo então executados vários cânticos, a quatro vozes. No fim, foram distribuídas bandeiras em papel, do Movimento de Libertação de Moçambique, tendo o furriel trazido algumas para o quartel.
A coluna do 1º pelotão, à passagem pela Cantina do Delfim, encontrou um grupo de frelimos. Claro, os camaradas, como bons militares, inseparáveis companheiros das Kalashes, saudaram o pessoal. Devem estar a comer-nos pelas costas!
Podemos, contudo, afirmar que têm sido feitos grandes progressos no Zóbuè, nos contactos com a Frelimo. E quem ganha com isto é a tropa, que está cá obrigada, em comissão de serviço, são os guerrilheiros que podem dar a cara nas suas acções e, principalmente, a população local que pode retomar a sua vida normal, trabalhando nas machambas e cultivando a terra que é rica em produção. Pena os terrenos polvilhados com napalm não produzirem nada durante vários anos por contaminação.

QUARTA-FEIRA, 7 DE AGOSTO DE 1974

A coluna de hoje saiu inflacionada de furriéis. Todos quiseram ir apanhar o pó da picada. Só cá ficou o sargento de dia, o furriel Silva, que, desde o seu regresso de férias da Metrópole, parece estar a ficar apanhado pelo clima.
Agora, todos os aramistas são voluntários para fazer a coluna. Ao que isto chegou!
Além das cartas, dos jornais e revistas, dos brandes e do bacalhau, há também militares a receber dinheiro da Metrópole. Santa guerra, meu Deus!
O furriel madeirense partiu para Tete, num 404, incumbido de depositar no Quartel General, o armamento da ex-PIDE-DGS.

TERÇA-FEIRA, 6 DE AGOSTO DE 1974

Oficialmente, dois militantes da Frelimo vieram ao quartel. Estiveram reunidos com os oficiais, durante mais de duas horas. Nada transpirou cá para fora. Apesar das cedências de parte a parte, parece-nos que devemos não só continuar com a segurança interna e externa, mas, e sobretudo, incrementá-la. Os camaradas, como nos chamam, estiveram na messe a conversar. E garantem que não querem continuar a guerra. Também nós! Mas os sorrisos de palmo e meio dos camaradas da Frelimo não nos convencem, totalmente.
O chefe da PIDE-DGS passou o dia entrando e saindo do quartel. Cada vez mais mal humorado que a anterior. Parece que recebeu ordens superiores, claro, para entregar aos militares, as armas daquela polícia política secreta, verdadeira inquisição moderna.


SEGUNDA-FEIRA, 5 DE AGOSTO DE 1974

Na cantina do Pereira, finalmente, realizou-se um contacto oficial entre os oficiais da 2ª e da 3ª Companhias e os chefes locais da Frelimo. Foi um longo encontro, durante quase cinco horas.
No quartel, começámos a inquietarmo-nos com a demora, pois com esta gente, nunca fiando. Não fosse acontecer a repetição do sucedido em Cabo Delgado, quando uma Companhia inteira, iludida pelos contactos com o IN, foi capturada. A falsidade povoa esta região.
Parece que foram dadas garantias à tropa de que não haverá mais problemas com as colunas. Em contrapartida, pedem-nos para não andarmos com as armas em posição de combate, nem fazermos operações. Pela parte que nos cabe, quanto às operações, Kanimam-bo!
Fala-se, à boca cheia, que a tropa, muito em breve, começará a regressar a Portugal. Aguardamos esse dia, com ansiedade!
Cada dia que passa é mais um risco traçado no calendário, somando o tempo passado nesta comissão de serviço ultramarino. Mas é acima de tudo a esperança de voltar em breve à terra prometida. Como o tempo demora a passar!


SÁBADO, 3 DE AGOSTO DE 1974

Parece confirmar-se que o grupo da Frelimo capturou os ladrões salteadores da cantina.
De manhã, pelas 07H30, chegou ao quartel a Berliet da 3ª Companhia carregada de militares de Capirizange que resolveram vir em passeio visitar os companheiros do Zóbuè e passar o dia connosco. Será que a guerra já acabou para eles? Que nos dirá o Capitão Freitas?