Sunday, September 24, 2006

SEGUNDA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO DE 1974

Os tempos mudaram! Da guerra de guerrilha constante, enervante e desgastante ao estado de paz, ainda que latente, em que se vive, a distância de um pequeno passo. O nervoso miudinho que se apoderara de toda esta gente, civis e militares, está a ser substituído pelo trabalho nas machambas sem o perigo dos sequestros ou da morte e, mais concretamente para nós, pelo relaxamento e ócio. Não há patrulhas. Não há colunas. O perigo iminente em cada curva e em cada palmo de terreno esfumou-se na fervura do alcatrão. Come-se, bebe-se, descansa-se e dorme-se. Bronzeia-se, joga-se, caça-se, bebe-se e dorme-se. Ouve-se música, muita música. Os soldados negros, segurando o tijolo debaixo do braço ou encavalitado sobre o ombro nunca se fartam de dar uns passos de dança ao ritmo da marrabenta. Alimenta-se o ócio à sombra da palhota construída sob os planos dos dois Sargentos e mata-se as saudades da terra natal com um naco de conversa agarrados às cervejas fresquinhas ao cuidado do 4L, o 1º cabo Sousa, que interrompeu o trabalho em terras de França para vir cumprir o serviço militar obrigatório à pátria que o viu nascer e depois ser mobilizado e desterrado no mato por ordens mesquinhas. Grande herói!
A picada transformou-se em estrada, quase uma pista de corridas, permitindo atingir velocidades elevadas, pelo que alguns militares até já vão ao cinema, na cidade de Tete. Moçambique, quem te viu e quem te vê!
A equipa de futebol da CCS deslocou-se ao Zóbuè para o 2º jogo, espécie de tira-teimas, em futebol entre as duas Companhias. 5 - 4 para nós e boa viagem para os vencidos, reconfortados com a refeição de convívio à base de leitão assado.


QUINTA-FEIRA, 10 DE OUTUBRO DE 1974

Aproveitando as novas condições da picada, — alargamento e asfaltagem — e por ela já estar operacional, um grupo de militares foi para a capital do distrito com o objectivo de tirar carta de condução. Deste modo, aumentará o número de assassinos da estrada. Há mesmo quem tenha alugado, a meias, uma flat e, assim, iniciamos o ensaio para o retorno à vida civil.
— Furriel, engraxa. Uma quinhenta, só! — solicitava o pequeno mainato, descalço, trajando no corpo raquítico vestígios de uns calções militares.
Continuamos a ir à caça. Carne de gazela e de javali recheiam os pratos e as marmitas e o vague-mestre já não passa as noites em branco, preocupado com os valores per capita. É vê-lo, de manhã, todo sorridente. Pudera, com menos bocas para alimentar e mais matambira a sobrar ... !


TERÇA-FEIRA, 1 DE OUTUBRO DE 1974

Toda a gente conta os dias que faltam para o final do ano, aguardando o conhecimento da data exacta do regresso à Metrópole. Então, é ver os números referentes aos dias de cada mês do calendário, serem riscados, um a um, com um brilhozinho nos olhos.
Deixámos de fazer escolta à coluna. Os camiões, os machimbombos e as viaturas ligeiras começaram a fazer o percurso para Tete, por sua conta e risco. O evoluir das conversações entre o governo português e a Frelimo, apontam para a independência de Moçambique, dentro de poucos meses. Consequência directa destas conversações, alguns Batalhões já começaram a preparar o regresso à terra-mãe. Enquanto isto, quem de facto regressou ao quartel, foi o alferes Gonçalves, que, hoje, retomou o comando.

DOMINGO, 29 DE SETEMBRO DE 1974

Após um encontro entre a tropa portuguesa e os operacionais da Frelimo, pertencentes ao grupo de Mateus, na cidade de Tete, ontem, o chefe do grupo deslocou-se ao nosso quartel, acompanhado por 12 subalternos, tendo estado reunido com os oficiais. Os camaradas do Mateus, com as unhas lascadas e os dentes afiados, não se misturaram connosco, permanecendo sentados junto da porta de armas, dialogando entre eles em "pretolhês". Mas souberam aceitar as cervejas oferecidas pela casa. Uma vez mais, dos oficiais, nada transpirou sobre a reunião, para a classe dos sargentos.
Esta noite, houve um festival de uivos irritantes. As asquerosas e famintas hienas aproximaram-se do arame farpado do quartel. Da próxima vez, a caça vai começar à porta de armas.