Thursday, November 26, 2009

A FORÇA DA SAUDADE


"COMO OUSA ESTA SAUDADE

SE INSTALAR DENTRO DE MIM,

SE MANDEI BLINDAR MEU CORPO

P'RA NÃO MAIS SOFRER ASSIM...



SÓ AGORA EU ENTENDI

O PORQUÊ DESTA INVASÃO,

UM CORPO AGENTE BLINDA,

MAS JAMAIS UM CORAÇÃO."



(N. Rogero)


A NOSTALGIA DA SAUDADE ... ?



O que de facto sentimos em relacção ao passado, neste caso concreto, sobre a nossa passagem por terra de Moçambique que poderá ser? SAUDADE? Esse sentimento humano da nostalgia, bem caracterizado por este vocábulo bem lusitano! Que estará por detrás de tudo isto? Por certo, a nostalgia do tempo da tropa: o camuflado trasando a suor e terra, o corpo embrenhado em sangue, suor e lágrimas, a estúpida ordem unida, a alimentação empastelada e grunhida pelos començais, o "IN" espiando camuflado na mata, o nervoso miudinho preste esplodir a cada instante, a desejada espera do aerogramo proveniente da Metrópole, as "bocas rafeiras" projectadas contra o comando institucionalizado, ... etc, ... etc, ... ! O que parece termos é uma virose de nostalgia. A tal saudade de sermos novos, ainda que impotentes perante os ministeriais desmandos burocráticos emanados pelos senhores da guerra. Talvez o poema do Nobel polaco, Czeslaw Milosz, CAMPO DEI FIORI, tente explicar o sentir inexplicável: "Nesse dia só pensei / Na solidão do morrer." E o som da metralha continua zunindo no subconsciente, enquanto não chega a hora da despedida.

Wednesday, November 25, 2009

ADEUS... ATÉ AO MEU REGRESSO... 36 ANOS



Hoje, 25 de Novembro de 2009, completam-se 36 anos da partida da 2ª Companhia do Bat. Caç. 5014 para Moçambique.
Recordo-me como se fosse neste momento: teluricamente, dirigimo-nos para o grande pássaro metálico, cinzento, da FAP. A curiosidade paisagística foi alimentada com a anuência do 1º cabo Sousa, o 4L, que não morria de amores para viajar de avião. Assim, ganhei direito a um assento junto da janela. E pude seguir o evoluir da descolagem do avião na pista do aeroporto de Lisboa... a ascensão segura sobre a capital, enquanto o Cristo Rei, em Almada, como que envergonhado, escondia-se no seio de uma pequena nuvem e o avião, rodando para bombordo, rumava para sul, embrenhando-se no ventre da escuridão nocturna. Castrava-se a esperança de uma ordem que nunca chegou. faziam-se promessas às divindades. Remoiam-se conjecturas.
Um dia, havia de voltar. Semeavam-se novos sonhos, novos objectivos. E o sono carregava o cansaço.

Adeus... até ao meu regresso!

INTERREGNO...


Quase três longos anos de interregno este blog alimentou. Felizmente, a vida continuou. E quase todos os sobreviventes, desde a data do último post ainda fazem parte do mundo dos vivos.

Entretanto, e retomando o tema, hoje, os personagens desta narrativa apresentam-se muito mais experientes e mais calejados pelo ritmo e trabalho diários.

Constituíram-se famílias. Os filhos nasceram. Os pais, pesarosamente, alguns libertaram-se da lei da morte. A vida continua. Com altos e baixos. A saúde começou a emperrar, em alguns casos. A fisionomia também se alterou. Dilatou-se o abdomem. O cabelo esbranquiçou. A calvície fez-se notar. Importante também, a amizade consolidou-se, dia após dia. Descobriu-se o paradeiros dos intervenientes, residentes algures, de norte a sul do país. E outros habitando no estrangeiro. Os encontros anuais muito contribuem para tal. Da nossa parte, tentaremos continuar com esta narrativa, sempre que possível, reportando as nossas novas experiências e os anseados encontros dos militares da Companhia.


Wednesday, December 27, 2006

QUINTA-FEIRA, 25 DE DEZEMBRO DE 1974

25 de Dezembro. É Natal! Este é o Natal do regresso. à terra que nos viu nascer, crescer e sermos preparados (?) para matar seres semelhantes a nós, embora com a cor da pele escura, muito escura, não sei se de sofreguidão, se do amor à terra-mãe.
É o natal há muito esperado, que, pelas circunstâncias especiais em que se incere, não deveria nunca ter lugar. É o natal por todos nós sonhado, vivido na paz terrena.
Para os nativos que além ficaram, na terra quente moçambicana, que natal será? Recordamos as pessoas, os lugares, os acontecimentos ... os bons e os maus.
è Natal!
FELIZ NATAL PARA O MUNDO!


Sunday, December 03, 2006

QUARTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO DE 1974 (Continuação)

Meia-noite e trinta minutos. O grande pássaro com a 2ª Companhia do Batalhão Expedicionário 5014 a bordo pousou. Quando o trem do avião beijou, chiando, o alcatrão da pista 03 do aeroporto da capital, estrondosa ovação eclodiu na cabina. Foi o concretizar de um sonho. Voltávamos a pisar o solo pátrio.
E depois ... uma vez recebida a guia de marcha para casa e escutada em sentido a última ordem militar ...
— Companhia, destroçaaar!!!
... os militares encetaram uma doida correria ao encontro dos familiares presentes no outro lado do portão de Figo Maduro, empunhando cartazes e dísticos com frases de apoio aos seus filhos, irmãos, namorado, noivo e amigos, acompanhados por uma fanfarra que debitava cançonetas e modinhas portuguesas — Ó Laurindinha, A Festa do Zé — alternadas com a canção mais escutada em Portugal desde o 25 de Abril e contra-senha para o avançar da Revolução dos Cravos, — Grândola, Vila Morena — a qual é a única responsável pelo nosso regresso antecipado à terra que nos viu nascer e crescer e que um dia, no 25 de Novembro de 1973, nos enviou para bem longe dos nossos ente queridos, para Moçambique.
Consciente do dever cumprido em defesa das populações, este punhado de bravos da picada, imbuído no espírito de solidariedade que reforça a amizade entre os seres humanos, sabe que algures, no meio da multidão, os furriéis ilhéus, Gabriel Medeiros e Lídio Araújo, sem um único parente ou amigo, com quem compartilhar todo o regozijo e prazer que aquele instante presenteava, emocionados, enlearam-se num abraço de companheirismo e mútua amizade, quadro fiel de gente feliz com lágrimas, deixando extravasar a alegria sentida no seu coração insular.
— Que fazemos, aqui, no meio desta gente, ó corisco mal amanhado?
— É verdade. Esta não é a nossa festa, madeirense de uma semilha!

QUARTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO DE 1974

A bordo, não se canta, grita-se. De copo na mão, durante quase toda a santa viagem, muitos militares extravasam a euforia que lhes invade a alma pelo momento presente. Muito tem que suportar a tripulação de cabina deste imenso pássaro metálico. Lugares como o 25D, destinado ao soldado Barbosa, só conseguiram suportar o peso de um corpo durante as operações de descolagem e de aterragem.
Incrível é, pois, descrever a alegria incomensurável destes corações, transbordando a rodes e trabalhando em ritmo acelerado.
Ao longe, já se vislumbram as luzes do solo pátrio. A Ponta de Sagres e o Cabo de S. Vicente desafiando o vasto oceano. Pouco a pouco, o avião, afrouxando os motores, executa a aproximação à capital da nação.
E as casinhas brancas emergindo do vasto solo alentejano já só fazem antever o lar, doce lar, onde poderemos, enfim, abraçar o calor fumado da lareira e respirar o suave aroma da casa portuguesa.
Lá em baixo, o Tejo, brilhando sob o luar argentino, parece correr célere ao nosso encontro, enquanto, de braços abertos, prontos para nos receber, a estátua iluminada do Cristo-Rei, em Almada, dá-nos as boas-vindas à pátria que nos viu nascer.
E de nariz colado ao vidro da janelita do avião, o soldado Sousa Silva, em silêncio, agradece a Deus Pai Todo Poderoso a graça divina de, são e salvo, poder reencontrar a família dentro de breves instantes.


TERÇA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO DE 1974

Ei-lo, ali, diante dos nossos olhos, estacionado na placa quente do aeroporto da Beira, onde há pouco mais de um ano, nos deram as boas vindas com os slogans: “Vai pró mato, malandro!” e “Checas, as minas esperam-te na picada!”
Reluzindo as cores dos Transportes Aéreos Portugueses, o Boeing 707, de nome Pedro Álvares Cabral, aguarda o nosso embarque.


SEXTA-FEIRA, 13 DE DEZEMBRO DE 1974

Sexta-feira, 13, dia de azar! Depois de tanto desejar a chegada deste dia, o que lucramos? A maior das decepções!
Hoje, foi, de facto, o dia mais azarado da comissão.
A Companhia ficou retida no aeroporto da Beira, depois de ter aguardado durante cinco infindáveis horas, pela chegada do avião dos Transportes Aéreos Militares. A justificação apresentada pelo atraso do avião foi que o mesmo sofrera uma avaria técnica num dos motores. Mais tarde, a alegação que correu nos meandros militares foi que o avião tinha sido tomado por uma Companhia de Comandos, em Luanda, a qual obrigou a tripulação a derivar para Lisboa. Ao certo, desconhecemos a justa razão. Ou serão bocas da reacção?
Levado à cena este episódio, a comédia termina com o adiamento e marcação de novo embarque aprazado para terça-feira, dia 16. Até lá ... seja o que Deus quiser!

DOMINGO, 8 DE DEZEMBRO DE 1974

A morte teima em seguir-nos até ao último instante da nossa presença nesta terra mártir. Duvidamos que deve existir uma relação de ódio-amizade com a nossa Companhia. Ou então perseguição pura.
Como se já não bastassem todas as baixas que tivemos, mesmo nas vésperas da nossa partida, a morte reincidiu em marcar a sua presença fúnebre junto de nós.
É incrível como no final de uma comissão, ultrapassadas tantas e tantas ratoeiras do mato, se pode dar de caras com a morte, emboscada junto da porta de armas.
O soldado mecânico Cunha morreu! Atropelado à saída da porta do quartel. É a ingratidão da vida sempre a pregar partidas, quando menos se espera. Razão teria, aquela mulher do mato, exasperada pelas contínuas contrariedades diárias, para maldizer:
— É melhor suportar a vida de puta do que aturar a puta da vida!
Tente-se imaginar a reacção da família, já conhecedora do seu feliz regresso a casa, agora ao ser alertada para a comunicação oficial desta triste notícia, através de um telegrama endereçado pelo Ministério do Exército.

“Sua Excia, o Senhor Ministro, incumbe-me de levar ao conhecimento de Vossa Excia, a morte do vosso querido filho, tombado em operações militares, ao serviço da pátria ...”

— Descansa em paz, companheiro Cunha!

O Batalhão inicia o regresso a Lisboa, no dia 11, com a viagem da CCS. No dia seguinte, será a vez da 1ª Companhia.
— Boa viagem, companheiros!


SÁBADO, 7 DE DEZEMBRO DE 1974

Feita a pernoita em Vila Pery, a Companhia seguiu para a cidade da Beira, aguardando embarque no Quartel General desta cidade. Parece mentira que o mato ficou para trás!

SEXTA-FEIRA, 6 DE DEZEMBRO DE 1974 (Continuação)

Quando as viaturas militares iniciaram a marcha da coluna final, já a população dos aldeamentos apinhava-se na berma da estrada para saudar e agradecer a presença da tropa portuguesa na terra de Moçambique.
— Kanimambo, militares portugueses. Obrigado por tudo o que fizeram por nós. — agradecia um velhote, dirigindo-se ao encon-tro das viaturas, com as mãos elevadas ao céu.
— Adeus! Tá! Tá! — despedia-se, choramingando, uma velhota sumida de carnes, rodeada por uma chusma de crianças em algazarra.
E no ar, misturado com o roncar grave das Berliets, Toyotas, 404 e 411, soava melancólico o eco dos gemidos, choros, risos e sorrisos da multidão que pouco mais tem de seu do que nada.
E o velho cipaio, do interior dos restos da velha farda amarela, com os olhos rasos de água, vendo-nos partir, felizes pelo regresso, acompanhou o seu último aceno com a voz trémula, afogada na emoção e ainda conseguiu murmurar:
— Obrigado, tropa portuguesa. Meu povo vai passar fome maningue, vai sofrer maningue e vai morrer maningue de gente.
De olhos postos no padrão nacional erigido na vila, junto ao posto fronteiriço com o Malawi, questionámo-nos, em silêncio, até quando permanecerá o derradeiro sinal físico, marco secular da presença de Portugal na terra moçambicana.
E já com as viaturas em velocidade de marcha, devorando o asfalto abrasivo da estrada, lançamos um derradeiro olhar para o quartel, onde as tendas, a arrecadação, a messe, os casebres ... brilhando à luz do dourado sol africano perpetuam no mais íntimo de cada um de nós as tristezas e as alegrias nele vividas durante um ano e sete dias. E tem-se a certeza de ali termos deixado grande parte da nossa juventude, devorado pelos fantasmas do gigante de pedra da fronteira com o Malawi.
— Zóbuè, até ... !


Sunday, November 19, 2006

SEXTA-FEIRA, 6 DE DEZEMBRO DE 1974

Hoje, chorei!
Chorei em silêncio, no interior da minha alma, ao recordar o tempo passado nesta terra cálida, emprestada para guerrearmos contra desconhecidos por conta de outrem. Chorei a perda dos companheiros que no desempenho das suas obrigações militares se foram da lei da morte libertando. Chorei pelos companheiros feridos em combate, arriscando a vida pelo bem dos outros. Chorei pelo povo negro desta terra que teme pela sua segurança, na ausência da tropa portuguesa. Chorei pelo pequenino Inácio, o mainato, de 8 anos, apenas um entre milhares, no solo moçambicano, que, com as lágri-mas escorrendo pela face cândida, suplicou-me a sua ida para a Metrópole. Chorei pelo velho régulo, esquelético e esfarrapado, de carnes disformes, tremendo o corpo todo, com o peso da responsabilidade das crianças, mulheres e homens, subnutridos e famintos do seu aldeamento. Chorei, quando, em continência, a bandeira nacional, ao som do toque das cornetas, dirigidas pelo 1º cabo Silva, foi, pela vez derradeira, arriada do mastro, terminando, assim, a presença oficial de Portugal neste rincão de Moçambique. Com a entrega do quartel ao chefe do grupo local da Frelimo, resta afirmar: Ao fim de 500 anos, cumpriu-se Portugal.


SEXTA-FEIRA, 29 DE NOVEMBRO DE 1974

Outra data para ser comemorada no dia de hoje. Um ano de Zóbuè.
Os dias e as noites sucedem-se como que cada vez mais lentos. Os ponteiros do relógio parecem que trabalham num ritmo mais preguiçoso. O desejo de regressar a casa é enorme. Em Portugal, a democracia, com alguma tremedeira, vai tentando consolidar o seu lugar, apesar dos inúmeros perigos que enfrenta. Por cá, nas conver-sas diárias com os camaradas da Frelimo descobrem-se verdades sobre o tempo da guerra, trocam-se impressões sobre as emboscadas, sobre as minas, sobre as flagelações, sobre os golpes de mão, enfim, sobre tudo o que diz respeito à vivência militar nesta zona. Conhe-cemos a cara daqueles que no dia tal estiveram emboscados ou que colocaram as minas accionadas ou que não rebentaram.
Ficamos a saber que o quartel esteve cercado, durante a realização de um desafio de futebol, em dia de Natal, e que só não executaram o golpe de mão porque dois militares, em rendição no posto do furo da água resolveram disparar à toa. Tomámos conhecimento que a Companhia só não foi atacada com morteiros, como previsto, graças à insistente solicitação dos indígenas residentes nos diversos aldeamentos da vila, alegando terem sido sempre muito bem tratados por esta Companhia, cujos militares, além de simpáticos e amigos, respeitavam a população.
Hoje, come-se e bebe-se e vive-se, lado a lado. Os inimigos de ontem irmanados pelo mesmo objectivo: libertar Moçambique do domínio colonial e libertar Portugal do jugo da ditadura salazarista.


TERÇA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 1974

Faz um ano que pisámos o solo de Moçambique! Um ano africano — da guerra à paz! Muito passámos nós. Maus momentos, muitos. Em contrapartida, os bons momentos foram imensos. Todos nós, muito aprendemos nestes 365 dias, longe da família e dos ami-gos. Sairemos de cá mais ricos em cultura e em experiência vivida. Não foi com a preparação militar da recruta e da especialidade que conseguimos sobreviver às inúmeras situações de perigo que se nos depararam. Foi, isso sim, fazendo e errando, refazendo e corrigindo, aprendendo com as dificuldades do dia a dia, numa entreajuda incomensurável.
Para comemorar este 1º aniversário — e tudo leva a crer que único — o comando do Batalhão veio visitar-nos. E nada melhor do que a prenda que nos fez. A revelação da data do embarque para Portugal: dia 13 de Dezembro, próximo.


SEGUNDA-FEIRA, 18 de NOVEMBRO DE 1974

No regresso ao quartel, violenta tempestade abateu-se sobre a picada. Os relâmpagos caíam do céu, cada vez mais intensos e os trovões faziam tremer o céu e a terra na noite de breu.


DOMINGO, 17 DE NOVEMBRO DE 1974

Hoje, foi o adeus às armas. A Berliet e o 404, ao despontar do dia, rumaram à Beira, a cerca de 700 Km, sob o comando dos furriéis Carlos Marques e Araújo, o madeirense, onde terá lugar a entrega das armas postas ao serviço da nossa Companhia. Sentimo-nos, assim, usurpados das nossas inseparáveis companheiras de aventuras e de desventuras.
Um pelotão de camaradas da Frelimo foi destacado pelos seus chefes para ficar sediado no quartel do Zóbuè. A partir de agora, os camaradas vão conviver com a tropa portuguesa no mesmo tecto, espera-se que em santa aliança.
— Quem diria que acabaríamos cohabitando o mesmo espaço físico!!!


Thursday, October 19, 2006

TERÇA-FEIRA, 12 DE NOVEMBRO DE 1974

Cinco militares portugueses, em dois Unimogs, comandados pelo furriel Araújo, deslocaram-se ao antigo destacamento de Viúva Henriques, acompanhados por elementos da Frelimo, com o objectivo de trazer para o nosso quartel, diverso material militar da daquele movimento, para dotar os seus destacados neste local. Com esta viagem inesperada àquela povoação, os furriéis Guerra e Araújo tiveram a possibilidade de rever o lugar onde passaram algumas semanas no início da nossa comissão.
Ambos os furriéis foram convidados pelo chefe do grupo a visitar uma base da Frelimo na república da Zâmbia. Os dois militares aceitaram o convite com a condição de o mesmo ter lugar até à data de saída da Companhia.
A cadela Laica, animal de estimação do Furriel Guerra, finou-se. Há vários dias que o bicho andava esmorecido, rejeitando a alimentação e com uma espécie de tosse canina.
— A Laica tem esgana. E não vou deixá-la sofrer. — afirmou o dono do animal.
Para grandes males, grandes remédios. O animal, num derradeiro esforço, foi atraído para próximo do motor da luz. Um tiro de Walter silenciou o sofrimento canino, no lugar onde uma cova, com cerca de meio metro, fora aberta para sua última morada.
— Pronto. Não sofre mais. Acabou-se! — exclamou o furriel, limpando duas lágrimas que teimavam escorrer pela face abaixo.


TERÇA-FEIRA, 22 DE OUTUBRO DE 1974

Um grupo de militares portugueses, entre eles o furriel Marques foi a Tete para uma festa de anos. Na continuação, deslocaram-se até à barragem de Cabora-Bassa.
Agora que a actividade bélica cessou, ocupar o tempo tornou-se tarefa difícil, pelo que é necessário pôr a imaginação a não dar tréguas à arte e ao engenho.
Durante várias horas, à sombra da palhota do quartel, um grupo de militares entreteve-se no fabrico de colares e de pulseiras, em missangas coloridas.
— Está bonito, meu furriel? — questionou o soldado Brilhante.
— Que beleza! Quando chegares à Metrópole monta uma fábrica.
— Furriel, eu vou fazer concorrência às muanas. — exclamou o soldado Veiga, enfiando várias pulseiras nos dois pulsos.
Outro grupo de soldados ocupou-se a trabalhar o pau preto, tentando realizar imitações de estatuetas artísticas. Simples recordações da passagem por África.


SÁBADO, 19 DE OUTUBRO DE 1974

A tropa indígena da incorporação da Província de Moçambique seguiu para Tete, onde serão devolvidos à actividade civil. Muitos deles pensam alistar-se na Frelimo. Militar do exército moçambicano é profissão de futuro. As mulheres é que ainda continuam por aqui batendo fuba para as refeições e tratando de alguns serviços necessários aos militares.


Sunday, September 24, 2006

SEGUNDA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO DE 1974

Os tempos mudaram! Da guerra de guerrilha constante, enervante e desgastante ao estado de paz, ainda que latente, em que se vive, a distância de um pequeno passo. O nervoso miudinho que se apoderara de toda esta gente, civis e militares, está a ser substituído pelo trabalho nas machambas sem o perigo dos sequestros ou da morte e, mais concretamente para nós, pelo relaxamento e ócio. Não há patrulhas. Não há colunas. O perigo iminente em cada curva e em cada palmo de terreno esfumou-se na fervura do alcatrão. Come-se, bebe-se, descansa-se e dorme-se. Bronzeia-se, joga-se, caça-se, bebe-se e dorme-se. Ouve-se música, muita música. Os soldados negros, segurando o tijolo debaixo do braço ou encavalitado sobre o ombro nunca se fartam de dar uns passos de dança ao ritmo da marrabenta. Alimenta-se o ócio à sombra da palhota construída sob os planos dos dois Sargentos e mata-se as saudades da terra natal com um naco de conversa agarrados às cervejas fresquinhas ao cuidado do 4L, o 1º cabo Sousa, que interrompeu o trabalho em terras de França para vir cumprir o serviço militar obrigatório à pátria que o viu nascer e depois ser mobilizado e desterrado no mato por ordens mesquinhas. Grande herói!
A picada transformou-se em estrada, quase uma pista de corridas, permitindo atingir velocidades elevadas, pelo que alguns militares até já vão ao cinema, na cidade de Tete. Moçambique, quem te viu e quem te vê!
A equipa de futebol da CCS deslocou-se ao Zóbuè para o 2º jogo, espécie de tira-teimas, em futebol entre as duas Companhias. 5 - 4 para nós e boa viagem para os vencidos, reconfortados com a refeição de convívio à base de leitão assado.


QUINTA-FEIRA, 10 DE OUTUBRO DE 1974

Aproveitando as novas condições da picada, — alargamento e asfaltagem — e por ela já estar operacional, um grupo de militares foi para a capital do distrito com o objectivo de tirar carta de condução. Deste modo, aumentará o número de assassinos da estrada. Há mesmo quem tenha alugado, a meias, uma flat e, assim, iniciamos o ensaio para o retorno à vida civil.
— Furriel, engraxa. Uma quinhenta, só! — solicitava o pequeno mainato, descalço, trajando no corpo raquítico vestígios de uns calções militares.
Continuamos a ir à caça. Carne de gazela e de javali recheiam os pratos e as marmitas e o vague-mestre já não passa as noites em branco, preocupado com os valores per capita. É vê-lo, de manhã, todo sorridente. Pudera, com menos bocas para alimentar e mais matambira a sobrar ... !


TERÇA-FEIRA, 1 DE OUTUBRO DE 1974

Toda a gente conta os dias que faltam para o final do ano, aguardando o conhecimento da data exacta do regresso à Metrópole. Então, é ver os números referentes aos dias de cada mês do calendário, serem riscados, um a um, com um brilhozinho nos olhos.
Deixámos de fazer escolta à coluna. Os camiões, os machimbombos e as viaturas ligeiras começaram a fazer o percurso para Tete, por sua conta e risco. O evoluir das conversações entre o governo português e a Frelimo, apontam para a independência de Moçambique, dentro de poucos meses. Consequência directa destas conversações, alguns Batalhões já começaram a preparar o regresso à terra-mãe. Enquanto isto, quem de facto regressou ao quartel, foi o alferes Gonçalves, que, hoje, retomou o comando.

DOMINGO, 29 DE SETEMBRO DE 1974

Após um encontro entre a tropa portuguesa e os operacionais da Frelimo, pertencentes ao grupo de Mateus, na cidade de Tete, ontem, o chefe do grupo deslocou-se ao nosso quartel, acompanhado por 12 subalternos, tendo estado reunido com os oficiais. Os camaradas do Mateus, com as unhas lascadas e os dentes afiados, não se misturaram connosco, permanecendo sentados junto da porta de armas, dialogando entre eles em "pretolhês". Mas souberam aceitar as cervejas oferecidas pela casa. Uma vez mais, dos oficiais, nada transpirou sobre a reunião, para a classe dos sargentos.
Esta noite, houve um festival de uivos irritantes. As asquerosas e famintas hienas aproximaram-se do arame farpado do quartel. Da próxima vez, a caça vai começar à porta de armas.