DOMINGO, 25 DE NOVEMBRO DE 1973
_ Toca a levantar, rapaziada! — gritou o sargento de dia à Companhia, ainda o corneteiro de serviço à Unidade tocava as últimas notas da alvorada.
Pequeno-almoço devorado à pressa e eis-nos formados na parada. Ao lado, tossiam bufadas de fumo os motores das Berliets, numa fresca manhã de outono.
No braço, o relógio marcava as 07H10, quando foi dada a ordem para abandonar o quartel.
Na estação ferroviária, despertava, da sonolência nocturna, o comboio que nos haveria de transportar até à capital do último império colonial.
Um dia passado, deslizando sobre os carris do país, de norte a sul, é demasiado tempo para deixar o corpo moído pelos constantes balanços da velha carruagem. Bem no íntimo de cada um, a chaga da traição do país que optou por enviar os seus filhos varões, na flor da idade, para o palácio da morte, transformava-se numa pequena ferida que nem o jogo da sueca conseguia disfarçar a angústia depositada no âmago do ser de cada um.
No aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa, antecedendo a partida, a Companhia foi autorizada, por breves instantes, a confraternizar com os familiares, namoradas, noivas e amigos. Apesar da situação, os jovens milicianos procuravam aparentar a serenidade camuflada e facilitar as despedidas.
Mas nem todos tiveram a possibilidade de receber os últimos conselhos dos familiares mais queridos, guardar um abraço amigo, provar o beijo amargo da partida. Os furriéis ilhéus, da Madeira e dos Açores, apenas encontraram o vão consolo da partida, no gesto solidário de uma desconhecida figura feminina que lhes ofereceu uns pastéis de bacalhau.
Entretanto, um transistor portátil, atafulhava em altos berros uma popular canção:
Ó Laurindinha, estás à janela a ver o teu amor, ai, ai, ai, ele vai prá guerra ... Se ele vai prá guerra, deixá-lo ir; é rapaz novo, ai, ai, ai, ele torna a vir...
Eram então 22H30, quando a “Sweet Caroline”, de Neil Diamond, foi interrompida e uma voz masculina, grave e pausada:
— Senhores passageiros do voo TAM-Transportes Aéreos Militares, com destino à Beira, queiram dirigir-se à porta de embarque.
Minutos volvidos, correndo sibilante, a aeronave cinzento-escuro levantou voo, qual pássaro acabado de fugir da prisão de uma gaiola, desafiando a imensidão espacial. No ventre, levava uma Companhia de Caçadores, para as matas de Moçambique.
Alguns companheiros de armas tentavam camuflar o nervoso miudinho com sorrisos disfarçados, respondendo às larachas do Primeiro Sargento. Mas a maioria deixava correr, face abaixo, uma lágrima teimosa, qual cartão de despedida.
Emudecidos, alguns recusavamm-se a crer na realidade, tantas vezes adiada e ruminavam pensamentos macabros. Engoliam, a seco, gritos de revolta contra os profissionais da guerra que sangra, que fere, que mutila e, pior, muito pior, que mata. Os milicianos, porém, impulsionados pelo acelerar contínuo do coração, sustentando a revolta armazenada na alma, formulavam hipóteses de sobrevivência.
Mas nem o suave fresco do ar condicionado conseguiu arrefecer o calor emocional deste punhado de homens, movendo-se e removendo-se nos bancos, para “tentar esquecer”, enquanto o avião acelerava sobre o Tejo, coalhado de navios, cujas águas serenas dormitavam delicadamente nos braços do oceano.
De nariz colado ao vidro da janelita, os olhos fitando o monumento ao Cristo Rei, em Almada, o soldado Sousa Silva, o SS, para os amigos, lança-lhe uma promessa, a ser cumprida mais tarde, se a sorte não lhe for adversa.
— Um dia, quem sabe, ... !
Depois, hipnotizado pela escuridão exterior, lentamente, deixa tombar a cabeça sobre o ombro esquerdo e começa a sonhar. Acordado. Também se sonha acordado. Sonha com o seu lugar vago na fábrica em terras de França, de onde saiu para cumprir o seu dever patriótico. Sonha com a família, labutando nas terras altas de Trás-os-Montes e, divagando, antevê o dia do seu regresso triunfal ao lugar que o viu nascer, onde a terra dura e rude foi, um dia, também trabalhada pelas suas mãos, antes de ter dado o salto para a Europa à procura de melhores dias.
Pequeno-almoço devorado à pressa e eis-nos formados na parada. Ao lado, tossiam bufadas de fumo os motores das Berliets, numa fresca manhã de outono.
No braço, o relógio marcava as 07H10, quando foi dada a ordem para abandonar o quartel.
Na estação ferroviária, despertava, da sonolência nocturna, o comboio que nos haveria de transportar até à capital do último império colonial.
Um dia passado, deslizando sobre os carris do país, de norte a sul, é demasiado tempo para deixar o corpo moído pelos constantes balanços da velha carruagem. Bem no íntimo de cada um, a chaga da traição do país que optou por enviar os seus filhos varões, na flor da idade, para o palácio da morte, transformava-se numa pequena ferida que nem o jogo da sueca conseguia disfarçar a angústia depositada no âmago do ser de cada um.
No aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa, antecedendo a partida, a Companhia foi autorizada, por breves instantes, a confraternizar com os familiares, namoradas, noivas e amigos. Apesar da situação, os jovens milicianos procuravam aparentar a serenidade camuflada e facilitar as despedidas.
Mas nem todos tiveram a possibilidade de receber os últimos conselhos dos familiares mais queridos, guardar um abraço amigo, provar o beijo amargo da partida. Os furriéis ilhéus, da Madeira e dos Açores, apenas encontraram o vão consolo da partida, no gesto solidário de uma desconhecida figura feminina que lhes ofereceu uns pastéis de bacalhau.
Entretanto, um transistor portátil, atafulhava em altos berros uma popular canção:
Ó Laurindinha, estás à janela a ver o teu amor, ai, ai, ai, ele vai prá guerra ... Se ele vai prá guerra, deixá-lo ir; é rapaz novo, ai, ai, ai, ele torna a vir...
Eram então 22H30, quando a “Sweet Caroline”, de Neil Diamond, foi interrompida e uma voz masculina, grave e pausada:
— Senhores passageiros do voo TAM-Transportes Aéreos Militares, com destino à Beira, queiram dirigir-se à porta de embarque.
Minutos volvidos, correndo sibilante, a aeronave cinzento-escuro levantou voo, qual pássaro acabado de fugir da prisão de uma gaiola, desafiando a imensidão espacial. No ventre, levava uma Companhia de Caçadores, para as matas de Moçambique.
Alguns companheiros de armas tentavam camuflar o nervoso miudinho com sorrisos disfarçados, respondendo às larachas do Primeiro Sargento. Mas a maioria deixava correr, face abaixo, uma lágrima teimosa, qual cartão de despedida.
Emudecidos, alguns recusavamm-se a crer na realidade, tantas vezes adiada e ruminavam pensamentos macabros. Engoliam, a seco, gritos de revolta contra os profissionais da guerra que sangra, que fere, que mutila e, pior, muito pior, que mata. Os milicianos, porém, impulsionados pelo acelerar contínuo do coração, sustentando a revolta armazenada na alma, formulavam hipóteses de sobrevivência.
Mas nem o suave fresco do ar condicionado conseguiu arrefecer o calor emocional deste punhado de homens, movendo-se e removendo-se nos bancos, para “tentar esquecer”, enquanto o avião acelerava sobre o Tejo, coalhado de navios, cujas águas serenas dormitavam delicadamente nos braços do oceano.
De nariz colado ao vidro da janelita, os olhos fitando o monumento ao Cristo Rei, em Almada, o soldado Sousa Silva, o SS, para os amigos, lança-lhe uma promessa, a ser cumprida mais tarde, se a sorte não lhe for adversa.
— Um dia, quem sabe, ... !
Depois, hipnotizado pela escuridão exterior, lentamente, deixa tombar a cabeça sobre o ombro esquerdo e começa a sonhar. Acordado. Também se sonha acordado. Sonha com o seu lugar vago na fábrica em terras de França, de onde saiu para cumprir o seu dever patriótico. Sonha com a família, labutando nas terras altas de Trás-os-Montes e, divagando, antevê o dia do seu regresso triunfal ao lugar que o viu nascer, onde a terra dura e rude foi, um dia, também trabalhada pelas suas mãos, antes de ter dado o salto para a Europa à procura de melhores dias.
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