Friday, December 23, 2005

TERÇA-FEIRA, 25 DE DEZEMBRO DE 1973

É Natal! “Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade". Quase esquecemos que é Natal! Esta noite de Natal, aguardada com ansiedade por milhões de pessoas em todo o mundo, foi igual às demais, passadas de há um mês a esta parte. Não houve glórias, nem Pai Natal, nem presentes, nem consoada, nem luzinhas coloridas piscapiscando, nem o pinheiro de Natal. Foi uma noite cheia de nada. Perdão, no firmamento límpido, biliões de estrelas cintilaram. Na terra moçambicana, o ar morno continuou a aquecer os corpos, escravos da incongruência bélica de uma alcateia de lobos atacada por senil demência.
De manhãzinha, saiu a coluna. Sempre a obrigatória protecção aos camiões da ÁGUIA, da CLAN e da SWIFT, aos particulares de transporte de mantimentos de e para a Angónia, Rodésia, África do Sul, Malawi e Tanzânia, aos machimbombos e às viaturas ligeiras.
Feita a entrega das viaturas, a nossa coluna retornou com os veículos provenientes das colunas de Caldas de Xavier e de Moatize.
A noite caiu rápida, como é habitual em África. A pernoita teve lugar em Capirizange, pequeno aldeamento protegido por um pelotão da 3ª Companhia e para o qual foi destacada uma secção da nossa Companhia, da responsabilidade do furriel Araújo — Ah! Leão! Os bons amigos deste destacamento fizeram questão de partilhar connosco uma sopa quente. No final, trocaram-se votos de Feliz Natal. Afinal, sem enfeites e sem hipocrisias, cumpriu-se o Natal na picada. Obrigado, Capitão Freitas.
No Zóbuè, um soldado negro, completamente bêbado, disparou nove tiros de G-3, compassados. Chamado à razão pelos superiores, apanhou uma valente tareia com assinatura dos seus conterrâneos. Enquanto isto, foram escutadas rajadas de Kalash entre o quartel e o furo da água. O reforço — grupo de quatro militares destacados, rotativamente, — aterrorizado pelo medo, galgou terreno e refugiou-se no quartel. Onde estão os valentes soldados, afinal? Perdoados pelo Capitão, retomaram a sua posição avançada. Uma secção saiu a patrulhar a zona e conseguiu apanhar um homem negro nas redondezas. Foi conduzido ao quartel para averiguações e posteriormente entregue à PIDE-DGS, onde foi vítima de fortes agressões físicas por parte do chefe.
O pouco pessoal que teve coragem para aquecer os lençóis deitou-se vestido com o traje de luta e o dedo no gatilho. Assim se faz a “Paz na Terra”.

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